SoftwareLivreTerritorioEValor

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Sobre

Este texto é uma colagem de uma discussão que ocorre no Saravá e também de trechos de outros textos que tocam na questão da territorialidade e da produção de valor no contexto do Software Livre.

Apenas produção de valor?

Partindo do texto The curse of capitalism, temos que:

  Economics is not the only driving force in the world. Not everything can
  be evaluated in terms of economics. The need for fulfillment that drives
  people to design and code free software is not always economic in
  nature, and so falls outside any economic model. As communism and
  capitalism are both economic models, they cannot be applied to free
  software developers, any more than they can be applied to an avid
  gardener, or someone who writes poetry and hides it away in their desk.

  Free software certainly affects economics. But don't let the tail
  wag the dog here: the economics are not entirely responsible for free
  software developers. Ignoring feedback loops (which admittedly are
  probably quite influential), it is free software that primarily
  affects economics, not the other way around.

Isso lembra, em primeiro lugar, da discussão do Adorno sobre tempo livre, onde ele coloca o hobby como sendo uma extensão da vida de trabalho, com os hobbys prontos sendo vendidos em prateleiras: você compra um kit de acampamento, um kit de ferramentas do tipo "faça você mesmo" e acaba por trabalhar como um consumidor desses produtos e dessa cultura de produção durante o tempo livre. Concordo que isso acontece, da mesma forma como hoje compra-se um estilo de vida, mas não acho que seja a máquina geral para todo o tipo de coisa que se faça no "tempo livre" (que pro Adorno não é tão livre assim). Acho que o texto "The curse of capitalism" traz isso um pouco à tona.

A Máquina Universal de Harry Potter é um texto do ensaísta marxista alemão Robert Kurz. Grande expoente do chamado 'marxismo menor' -- que parte da obra de Marx para fazer uma crítica ao valor abstrato e ao fetiche da mercadoria, ao invés de se concentrar na crítica do trabalho e na luta de classe --, Kurz mantém uma ácida e pontiaguda produção crítica sobre a sociedade da mercadoria, a sociedade do modo de produção baseado no valor, grande parte dela de maneira independente e publicada na internet (pelo menos as traduções para o português). Participou ativamente da formação do grupo Krisis, que teve grande importância nos anos 1990, quando o pessoal de esquerda não sabia muito bem como criticar o capitalismo, e escreve acho que todo mês no caderno Mais, da Folha de São Paulo. Um de seus principais livros é 'O colapso da modernização', no qual, em 1991, faz uma bela leitura do fim do socialismo real não como uma vitória do capitalismo, mas como uma crise aguda da modernização baseada na produção de mercadorias e exploração do trabalho abstrato. No texto aqui indicado, ele faz -- com muita ironia, como de praxe -- uma crítica ao conceito de trabalho imaterial tal como Antonio Negri e Michael Hardt o definem. O que nos interessa é que o alemão desce o páu no chamado movimento 'free software'. Kurz parece não entender nada de tecnologia, mas ele não deixa de levantar uma questão importante: não é possível fazer download de pão!

Esse texto possui muita coisa a ser discutida, principalmente se o software livre constrói um 'território fora da produção de valor'. Kurz diz que não, achamos que sim, mas os argumentos do cara são bons.

Analisando um pouco o texto do Kurz, vemos muita coisa interessante mas também alguns erros, como por exemplo a afirmação:

  "O capitalismo não tira mais-valia real nenhuma do processamento da informação."

Com essa afirmação, Kurz se esquece de que um sistema informacional nem sempre possui sua entrada de dados automatizada, sendo que o boom da Web 2.0 se baseia exatamente nesse fato.

Contudo, o que parece ser interessante para essa discussão é este trecho aqui:

  O movimento designado de "free software" compreende mal essa contradição
  imanente do desenvolvimento capitalista, ao fazer de conta que já
  haveria aqui um "território livre", para lá do dinheiro. Porém, a
  crítica do enriquecimento dos conglomerados mediáticos por meio de
  licenças legais para software e outros produtos da "informação"
  permanece superficial porque não toca nas relações sociais de produção.
  Empola-se unilateralmente um aspecto secundário da crise num pequeno
  sector e a questão da emancipação é reduzida a isso. A sociedade deve
  ser transformada não por um grande movimento contra os desaforos da
  administração da crise, mas por um "modelo" alternativo tirado da esfera
  virtual, o qual deveria ser apenas estendido. O mundo deve
  restabelecer-se com o "free software". De novo se trata de inflar em
  universalidade um pretenso mundo-modelo, sem mediação de toda a
  sociedade.

  Mas essa utopia fracassa justamente por causa do carácter de facto
  imaterial dos conteúdos que são transportados via Internet. Se o aspecto
  material do "trabalho abstrato" não pode ser representado nos fluxos de
  informação da Internet , então menos ainda os objectos reais da
  necessidade na sua maioria. Não se pode "fazer download" de pão nenhum,
  nem vinho, nem calças, para não falar de aço laminado ou materiais de
  construção; e nem sequer um livro, como deve saber quem quer que tenha
  tentado ler no ecran uma obra literária maior, ou imprimi-la num mar de
  papéis. Já por isso não se pode tirar só da Internet nenhum "modelo" de
  reprodução social, que se situe para lá do sistema produtor de
  mercadorias. Os neo-utopistas querem se iludir sobre esses limites de
  sua ideia unilateral, declarando que o problema é meramente provisório e
  pode ser resolvido pelo desenvolvimento tecnológico futuro.

As afirmações parecem proceder, mas talvez o primeiro erro dele aqui é, da mesma forma como o texto "The curse of capitalismo" aponta, é ver o software livre puramente no plano da economia. Nela, realmente o software livre não é a "alternativa emancipatória que deve ser estendida para fora da esfera virtual".

Mesmo assim, se observarmos o software livre no plano da economia, vemos que o Kurz não entende direito seu modo de produção pra fazer uma crítica decente.

Ele afirma que "Em primeiro lugar, nenhum trabalho é "imaterial", nem sequer nos sectores da informação e do "conhecimento"; sempre se trata da combustão de energia humana. Imaterial é a maior parte dos produtos desse trabalho", e isso faz sentido.

Mais pra frente, porém, que a "crítica do dinheiro não se refere, como em Marx, a todo o modo de produção, mas apenas à esfera da circulação".

Parece que ele enxerga o software livre nada mais como um outro trabalho como qualquer um e que a única imaterialidade está no produto final e na sua circulação. Ele esquece ou desconhece toda uma organização social existente na produção do software livre (e mais recentemente explorada no open source) e por isso que a crítica dele não encerra esse assunto. Muito pelo contrário, ela coloca questões importantes que ainda estão abertas.

Ou seja, dentro do tempo do trabalho temos esse questionamento do Kurz, fora dele temos o "The curse of capitalism", o estudo do Adorno e também o célebre texto do Bill Gates, An Open Letter to Hobbysts.


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