CriticaAoSingularismo

Crítica ao pensamento singularista

A ficção científica revela muito mais os anseios sociais do presente do que as reais (e nem sempre evidentes) tendências do futuro. Em geral atribuída a um papel secundário pelas ciências sociais nas análises de conjuntura, tentaremos mostrar, neste texto, não apenas a influência do "espírito do tempo" na literatura de ficção científica ao longo dos tempos como também o discurso político implicitamente nela contido, sendo este muitas vezes servindo de base ideológica pelos regimes sociais.

A ficção científica sempre se caracterizou, ao menos até recentemente, pelo posicionamento da tecnociência como fator principal das dinâmicas sociais e das buscas humanas, herdando diretamente o distanciamento que as "ciências exatas" procuram manter das demandas políticas e sociais. Há um comportamento típico do cientista de não se envolver com as questões mundanas e permanecer isolado em sua área de atuação (algo que, como veremos a seguir, tem mudado mas que imprimiu uma marca mais ou menos indelével na literatura de ficção científica).

Tal separação faz com que, na ficção científica, os dilemas e tensões sociais e existenciais dos vários momentos históricos sejam depositados na realidade técnica do cenário ficcional. Assim, mesmo as configurações sociais se apresentam nessa literatura como consequências (superestruturas) do aparato técnico. A ficção científica é então o palco tanto de utopias quanto distopias onde a tecnociência desempenha o papel de destaque ao invés de também (ou apenas) compor o cenário.

Uma genealogia pode nos levar tão longe quanto queiramos, indo até mesmo depois da semelhança entre a ficção científica e os mitos de diferentes povos, o que nos faria passar, por exemplo, por deuses astronautas e pela panspermia cósmica (algo que, inclusive, tem sido recentemente resgatado por correntes ocidentais do espiritismo e do chamado New Age). Passaríamos também pela Torre de Babel, pela Arca de Noé, pela República de Platão e pela Utopia de Morus, todas obras contendo elementos também compartilhados pela moderna e pós-moderna ficção científica.

Nossa limitação analítico-sintética e nossos objetivos políticos para com este texto nos obrigam, contudo, a efetuarmos um recorte no qual, a partir de um estudo de caso, tentaremos estabelecer relações dialógicas entre a ficção científica e as angústias sociais.

Se para os períodos clássico e medieval temos dificuldade de distinguir a literatura de ficção científica da, digamos assim, "ordinária" (até porque o próprio conceito de ciência se torna complicado para tais épocas), é a partir do Renascimento que, por causa da reconstatação da existência de territórios desconhecidos (oceanos, continentes, estrelas, planetas e depois micróbios e a própria matéria), percebemos uma mudança de foco, onde o ser humano passa a ser um figurante e sua técnica é que o leva a novas relações com o ambiente e com a sociedade.

É verdade que no Renascimento a distinção entre técnica e natureza, característica da ficcção cientîfica hegemônica (para não dizer alienante), ainda era embrionária, como podemos observar em Micrômegas, de Voltaire, mas com o impacto da Revolução Industrial tal diferenciação se torna nítida, sendo provavelmente Julio Verne a figura mais expressiva do período, quando a jornada rumo ao inexplorado apenas se torna possível com o auxílio de equipamentos.

Tanto no Renascimento quando na Modernidade, tais buscas pelo desconhecido não são apenas simples reflexo de um instinto pela exploração e conquista da terra ignota (como Carl Sagan afirma na introdução de seu famoso livro Pálido Ponto Azul), mas também e principalmente por um impulso (que pode ser um "instinto") de fuga de um mundo decadente para algum outro onde seja possível recomeçar. Viagens de submarino e de foguete são exemplos paradigmáticos, enquanto que uma volta ao mundo num balão pode ser considerada como uma sintomática constatação da incapacidade do ser humano de escapar de sua condição ou resolver os problemas que promove (tema que abordaremos adiante ao comentarmos a obra de Stanislaw Lem).

Se no Renascimento era almejada a fuga de cidades pestilentas e de reinos decadentes para o além-mar, no mundo industrial queria-se fugir da fábrica, do reformatório, da guerra, do planeta ou até mesmo do tempo presente, como numa claustrofobia que necessitasse de ambientes cada vez mais amplos para que não se manifestasse. A Revolução Industrial, que trouxe à tona o problema da entropia (sendo talvez a mais claustrofóbica de todas as idéias do período) fez até com que o escritor Isaac Asimov questionasse os limites da humanidade, da técnica e do próprio Universo em seu brilhante conto "A última questão" (tradução em português e de cujo conteúdo não comentaremos para incentivar a leitura obrigatória desse texto).

Asimov é, aliás e ao lado de figuras como Arthur Clarke, um dos maiores representantes da chamada "era de ouro" da ficção científica: Asimov defende, nas entrelinhas, um triunfo sempre heróico da tecnociência como agente imprescindível para a resolução de impasses sociais. Em sua obra mais premiada "Fundação", ele apresenta um Império Galático em decadência que pode evitar um retorno ao barbarismo (numa curiosa analogia com o Império Romano e a Idade Média) se criar uma fundação para manter e prosseguir o desenvolvimento da tecnologia e da ciência.

Já Arthur Clarke, em algumas de suas obras, tende a atribuir a evolução humana a alguma inteligência ou civilização mais avançada, tema principal de "2001: uma odisséia no espaço" e também de "Fim da Infância", ou então à indiferença de uma inteligência superior, caso de "Encontro com Rama".

De todo modo, os ficcionistas da era de ouro ainda possuíam o otimismo e a confiança do mundo industrializado, ao afirmarem implicitamente que a tecnologia levaria necessariamente à erradicação das mazelas humanas. Mas a Primeira Guerra Mundial e a crise de produção de 1929 (que já mostrou na prática que a técnica está extremamente relacionada com as escolhas políticas tomadas pela sociedade ou por quem a comanda) foi deflagrada, as bombas atômicas e os efeitos colaterais do "desenvolvimento" dos regimes industriais totalitários amargamente contrariaram o discurso otimista dessa era de ouro.

É então que vemos uma mudança drástica na ficção científica, que passa a assimilar teorias conspiratórias inspiradas pela paranóia da Guerra Fria até, bem recentemente, na década de 80, culminar no niilismo e pessimismo do Cyberpunk, como um reflexo da morte das utopias.

Após esse período, principiamos a perceber um novo discurso determinista e teleológico, desta vez afirmando um outro tipo de inevitabilidade: que a tecnologia não avança para o bem ou para o mal da humanidade, mas sim que ela avança tendo como objetivo o seu próprio avanço, sendo o equivalente técnico (ou mesmo a extensão técnica) para o princípio antrópico.

Tal discurso, que começou na ficção científica e que agora permeia inúmeros think-tanks e institutos neoconservadores, se apóia no princípio da chamado "Singularidade".

A Singularidade Tecnológica

A incessante busca por inovação faz com que, no capitalismo tardio, a busca por tendências tecnológicas e sociais ocupe um posto de destaque não apenas nos departamentos de pesquisa & desenvolvimento e nas consultorias de economia, mas nos próprios anseios sociais, quando então os novos ramos interdisciplinares da ciência, agregados no termo comum "Futurologia", passam a dialogar quase de igual para igual com a ficção científica. Mesmo na "Fundação" de Asimov já podemos notar o interesse pela pesquisa de tendências (no caso, através de uma hipotética teoria matemática e posteriormente cognitiva chamada de "psicohistória").

Por conta de tal cruzamento entre ficcção científica e os estudos mais "sérios" das tendências sociais que, a partir deste ponto, não faremos mais tantas distinções entre o que é possível e o que é impossível, mas sim a distinção do que certos grupos e fundações pregam como o caminho inevitável para o futuro, ou seja, o que cada grupo de interesses deseja determinar em termos de futuro.

  • Hoje, alguns ficcionistas até deslocaram seu interesse do drama humano mas pelo drama das próprias máquinas (ou o humano fundido com a máquina).
  • Expansão de Kurzweil (Lei de Moore Extrapolada, medida da capacidade de controle, processamento informático, decaimento do custo do sequenciamento genético, nanotecnologia, etc).
  • Escala de Kardashev, futurologia, singularidade tecnológica e teleologia.
  • Singularismo e tecnofascismo.
  • A singularidade também é uma fuga para o desconhecido, desta vez o desconhecido mundo virtual das mentes fundidas. Num mundo real em pleno desastre ambiental e social, este deve ser o anseio de muitos.

Outros pontos

Outros pontos a serem desenvolvidos:


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