P3SE

O circuito p3sE e o ativismo, genealogia (?) de uma relação

No texto A apropriação energética e simbólica delineamos o funcionamento geral dos circuitos e processos de apropriação das comunidades e grupos ativistas. No presente texto, nossa intenção é mostra um caso particular de funcionamento de tais tipos de circuitos fazendo um estudo de caso sobre o que ocorreu durante certo período no Brasil, identificando determinados papéis e procedimentos de captura.

Desde 2003 as redes ativistas vêm se relacionando no Brasil com um circuito profissional-terceiro_setor-estatal [p3se]. Primeiro, através do financiamento de projetos e intervenções de 'coletivos', depois através da 'colaboração'[1] para a elaboração de projetos e, por último, através da contratação e remuneração para a elaboração, gestão e execução de projetos, dentre os quais, se destacam os que podem ser agrupados sob o rótulo de 'Inclusão Digital'.

Num primeiro momento, o interesse de atores [p3se] foi recebido como uma excelente oportunidade para a realização de projetos e atividades numa escala maior do que os ativistas estavam acostumados. Em alguns casos -- como o do projeto Cultura Digital, ligado ao Ministério da Cultura (MinC) --, esses grupos ativistas saíram dos quintais de suas redes de vizinhança, para atuarem em projetos de escopo nacional. Outro fator, que seduziu fortemente as pessoas, foi a possibilidade de autonomia financeira: pela primeira vez, em muitos casos, o ativismo não seria mais a tarefa do tempo livre, o tempo que sobrava de estudos e trabalhos precários, passando a ser uma atividade remunerada (em alguns casos muito bem remunerada) e, por isso, a atividade principal. Portanto, era a soma do útil ao agradável: receber para ser ativista.

Porém, será que não estavamos sendo muito ingênuos? Entrar em relação [2] com o circuito p3se não nos transformaria de maneira drástica? Não estaríamos nos submetendo a regimes de trabalho e produtividade que exigem uma completa reformulação de nossas práticas e, consequentemente, dos resultados de nossas atuações?

Nesse sentido, aparecem duas dobras:

  • Qual o interesse do circuito p3se nas redes ativistas e colaborativas? o que eles ganham nos apoiando? E, talvez o mais importante, COMO eles ganham nos apoiando?
  • O que significa ser ativista dentro desse agenciamento economico-político? Qual o sentido e, talvez o mais importante, quais as possibilidades de ações políticas radicais através dessa trama de mediações?

O hibridismo e o gerenciamento da cultura

Essa genealogia não é mais antiga? Ela não teria bases no modernismo e na tropicália, sendo a exploração empresarial de uma antropofagia e de um hibridismo cultural? Como Zygmunt Bauman coloca no seu livro Vida líquida[3]:

  Nas manobras da heterogênea elite letrada (global), a "hibridização" é um substituto para as
  antigas estratégias de "assimilação" - ajustada às novas condições da era pós-hierárquica,
  líquido-moderna. Vem num mesmo pacote que o "multiculturalismo" - uma declaração da equivalência
  de culturas e um postulado de sua igualdade, tal como a estratégia da "assimilação" acompanhou
  uma visão da evolução cultural e de uma hierarquia de culturas.

Nesse livro, há ainda um capítulo sobre cultura que parece muito interessante para essa discussão. Ele começa falando sobre a idéia de cultura, que surgiu na época da formação dos estados-nação (cultura como um cultivo do ser humano, naturalmente incompleto, no sentido da "agricultura" de pessoas). Nessa primeira idéia, cultura é um gerenciamento de pessoas e comportamentos, onde os gerentes favorecem probabilidades de determinados eventos acontecerem para favorecer a unidade da nação. Essa visão contrasta um pouco com uma um pouco mais recente de que cultura é uma forma de auto-regulação da sociedade (o cara fala de homeostase). Com a líquido-modernidade, onde o consumismo é exacerbado, os gerenciadores de cultura passam do estado para o mercado, o que quebra a necessidade de auto-regulação da sociedade na cultura e também a idéia de manter uma regulação extrema sobre os produtos culturais.

Para Bauman, sempre houve uma tensão entre criadores de cultura e os gerenciadores dela. Enquanto os criadores de cultura tem um impulso transgressor, os gerenciadores tendem a refreá-lo. Para ele, a cultura e o gerenciamento precisam um do outro pra se manter (concordo em parte e com várias ressalvas), só que hoje o gerenciamento requer uma cultura que seja rapidamente criada e tornada obsoleta, o que em termos puramente culturais é meio incompatível. Então ele afirma que começa a se esboçar uma quebra entre cultura e gerenciamento.

Existe ainda muita coisa que ele não explorou e que podemos discutir, se incluirmos a tecnologia nessa conversa. Quando ele fala, por exemplo, de que não existe um controle do gerenciamento sobre qual produto cultural será célebre, notório e vendável (o que realmente ninguém sabe e sempre chuta, apesar de existirem alguns estudos pra tentar sacar isso), nós temos hoje um sistema informacional que vai facilitar muito esse tipo de estudo em cima das redes sociais.

Nesse ponto surgem mais duas questões:

  • Em que medida que o Circuito P3SE se coloca nessa tensão entre gerenciadores/as e criadores/as de cultura?
  • O quanto esse circuito está se delineando para ter um maior controle sobre o que será célebre e notório em termos de produção cultural?

O ciclo de dependência e perpetuação

  • Escrever projetos
  • Realizar encontros
  • Projetos para ganhar dinheiro
  • Encontros para falar de projetos

Uso de verbas públicas e a mudança social

Sobre o uso do dinheiro público: acho que a questão de se o dinheiro é público, estatal ou governamental não faz muito sentido: por mais que o dinheiro venha das pessoas e no discurso tenha que ser utilizado em prol dessa suposta coletividade e por causa disso seja chamado de "dinheiro público", ele passa por um gerenciamento centralizado que constitui aparelho estatal e concentração de poder, o que torna o dinheiro muito menos público e de uso ou propósito transparente.

É difícil entender porque hoje em geral se afirma que pra algum movimento social fazer alguma coisa é necessário captar recursos financeiros. Historicamente as lutas sociais não se basearam na arrecadação de verba pública e o fato de instituições estarem hoje distribuindo verbas pra esse suposto tipo de atividade deve ser no mínimo muito questionada. Eu pelo menos acho que esse questionamento tem umas respostas imediatas que são as apropriações das lutas dos movimentos sociais, movidas em parte com dinheiro institucional.

Agora, imagine o que seria dos movimentos sociais se eles apenas conseguissem resultados se se baseassem na arrecadação de recursos destinada a comprar mais trabalho. Isso é uma contradição de termos. O que algumas pessoas defendem aqui seja a arrecadação com fins de sustentabilidade, mas a sustentabilidade das pessoas não deve de modo algum comprometer a atuação dos movimentos no sentido de entregá-lo como parte do portfolio profissional.

O futuro da relação com o governo

As relações entre esses grupos e o governo vai continuar no caso de uma mudança de partido ou os grupos se manterão apenas a partir de financiamentos do terceiro setor? É difícil dizer. Grandes são as changes da relação acabar, a não ser por duas possibilidades:

  • Muitos desses grupos estão aprendendo a fazer projetos para obter financiamentos no exterior (que, afinal, é a própria tática do Ministério da Cultura, em cujos projetos apenas parte da verba é proveniente de recursos federais).
  • Não podemos nos esquecer que o openbusiness é uma estratégia extremamente neoliberal, por isso é possível que os tucanos até mantenham essas linhas de financiamento, editais e projetos. Afinal, é propaganda e controle obtidos praticamente de graça.

Por isso, um governo tucano (por exemplo) cortaria vários canais de acesso (pois tende a favorecer o establishment cultural, os grandes artistas e a grande mídia tradicional), mas pode sim manter esses processos de captura porque são lucrativos em vários sentidos. As iniciativas da cultura digital já mostraram como a cultura brasileira pode ser administrada para poder gerar dividendos ou financiamentos quando oferecida no exterior, por exemplo.

Referências e desenvolvimentos futuros

[1] Colaboração está entre aspas pois, no caso, trata-se da colaboração sendo 'xupinhada' (com 'x' ou 'ch'?) -- que é um dos temas principais dessa conversa. Em mente, eu tenho o projeto que se articulou em torno do Claudio Prado, que no começo tinha como objetivo a idéia da BAC, que virou Pontos de Cultura e que culminou na formação do 'Cultura Digital' que é uma empresa ambígua que fica entre o IPTI e o MinC, com diversas fontes de financiamento. Eu acho que esse projeto é chave para a reflexão de nossas questões, pois foi uma importante 'escola', por exemplo, os participantes eram chamados de 'articuladores' e uma de suas tarefas era a de identificar outros 'articuladores'. Um 'articulador' é um hacker, um cara do hip hop, o líder comunitário... é o boderline (conceito que precisamos introduzir na questão): faz a ponte entre diferentes mundos: comunidade e o fora, global e o local, tradicional e o novo. Eu tenho o documento que foi entregue ao MinC que 'vende' a idéia da 'cultura digital', no final, traz uma lista com o nome e uma pequena (auto)descrição de mais de 80 pessoas que eram participantes da lista de email através da qual uma colaboração comunitária, aos moldes do software livre, produziu um 'projeto colaborativo'.

[2] É sempre bom lembrar a leitura que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fez de Gilbert Simondon sobre a diferença entre relação e conexão: toda relação envolve uma transformação, no sentido em que uma relação entre dois termos é uma soma em que 1+1=3, pois a relação entre os termos é tão importante quanto os próprios termos. Ao entrar em relação, os termos se transformam pois adiquirem características um do outro. A conexão teria o sentido de um contato que não envolve uma transformação. Em frnacês há duas palavras diferentes: rapport e relation. (PRECISA DESENVOLVER MAIS, TÁ AQUI SÓ PRA LEMBRAR). Referência: O nativo Relativo, nota de rodapé número 5.

[3] Bauman, Zygmunt, Vida líquida, pág. 44 (Ed Zahar, 2007, ISBN 978-85-7110-969-8). Nesse livro, o sociólogo polonês trata dessa tal de vida líquido-moderna, feita de consumismo extremo, indefinição, constante busca pela individualidade e trocas permanente de identidade.

[4] Alguns papéis desempenhados: lobbysta, borderliner, inocente útil, prospector, surfista.

[5] A dinâmica de projetos (lançar editais quando não se sabe o que correr atrás culturalmente) é uma forma de gerenciamento às escuras: as pessoas vão até você. É uma forma de incentivo à inovação quando não se sabe ao certo de onde ela pode vir.

[6] Relação com Extreme Programing, Toyotismo/Volvismo computacional e projetos de cultura digital, caracterizados pela ausência de plano ou com plano extremamente variável.

[7] No momento de renovação da indústria cultural, o paradigma da inovação aberta ganha fôlego e o Brasil desponta como pioneiro no hibridismo e no sincretismo cultural. Não apenas a facilidade de mistura cultural é evocada como ingrediente principal na qualidade e no tamanho das comunidades de software livre brasileiras como a própria dinâmica de produção e reprodução cultural (antes mesmo da era do sampling) do povo brasileiro parecem conter a invenção a partir da mistura do existente como ingrediente básico. Não é à toa que foi possível até mesmo considerar (em certo sentido) como primeira invenção do povo brasileiro a sua própria invenção (vide Ribeiro, Darcy, O povo brasileiro). Desde então, Modernismo, Tropicália e Mangue Beat tem sido exemplos de remisturas sucessivas desse cunhadismo -- velho uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade (O povo brasileiro, pág. 81) -- tem sido usados pelos lobistas nacionais para tentar vender o país como repositório renovável, inesgotável e passível de exploração sustentável pela indústria cultural mundial.

[8] Prospecção no Brasil Profundo.


Copyright (c) Coletivo Saravá: desde que não mencionado em contrário, este conteúdo é distribuído de acordo com a Licença de Manipulação de Informações do Coletivo Saravá.