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Autogestão e tecnologias alternativas
Trechos de Autogestão e tecnologias alternativas:
A idéia de gestão tende a apagar a idéia de autonomia. Pela influência dos valores tecnocráticos sobre o pensamento, a autogestão, conceito fundamental a uma administração libertária da vida e da sociedade, foi preterida a favor de uma estratégia de gestão eficaz e rentável. Deste modo, a idéia de autogestão é cada vez mais tida em conta, mesmo pelos sindicalistas mais decididos, não por motivos de autonomia pessoal, mas por razões de funcionalidade econômica. Somos impelidos a pensar que "o pequeno é bonito", não porque assim possamos obter uma sociedade à escala humana, que cada um possa controlar, mas porque dessa forma economizaremos energia. Autonomia e autogestão são encaradas como componentes da lógica industrial, isto é, atitudes mais aptas a resolverem problemas econômicos e técnicos do que problemas morais e sociais. É a própria sociedade que nega a individualidade do homem, que estabelece, afinal, os termos que devem ser utilizados por aqueles mesmos que a pretendem modificar num sentido diferente e libertário. Ela apropria-se, de forma decisiva, da sensibilidade dos seus oponentes mais decididos, estabelecendo os parâmetros das suas críticas e opiniões. Em suma, ela "industrializa" a sua própria oposição possível. [...] Também a autogestão, que recusa pôr em causa as suas bases de atuação técnica, não é, por outro lado, menos paradoxal. Será, com efeito, possível acreditar que nas empresas nacionalizadas, ou sob controle operário, estes terão mudado de maneira decisiva o seu comportamento social, cultural e intelectual? Será que uma fábrica, uma mina ou uma grande exploração agrícola se tornam espaços de liberdade e de livre criatividade, só pelo simples fato de serem coletivos operários que os gerem? Será que a simples eliminação da exploração econômica traz inevitavelmente consigo o fim da dominação social e da alienação cultural? Superando o poder de classe, superaremos o poder da sua hierarquia? Isto é, para falar de modo mais preciso e sucinto, poderão as técnicas atuais responder de forma adequada à modificação e à transformação desejada? É justamente a partir daqui que noções como "controle operário", "democracia industrial", "participação econômica" se mostram, por si só, claramente insuficientes. [...] Aquilo que me proponho defender aqui é a necessidade que os defensores da autogestão têm em lidar com a tecnologia de uma forma muito idêntica, e num contexto ético semelhante àquela utilizada pelos grupos anti-nucleares na sua relação com os recursos energéticos. Eu proponho que perguntemos se a fábrica, a mina ou a grande exploração agrícola podem ser legitimamente consideradas como espaço aceitável para uma concepção libertária de autogestão, e se assim for, quais são então as alternativas possíveis, as alternativas que justifiquem, num campo ético e social, essa mesma concepção libertária. Esta tarefa torna-se cada vez mais necessária, na medida em que o conceito de "autogestão" é cada vez mais encarado como um problema técnico de administração industrial. O "controle operário" pode mesmo tornar-se uma moda de gestão, sem qualquer implicação social de relevo, enquanto os operários consentirem em serem encarados apenas enquanto operários. As suas decisões podem até ser consideradas e tidas em conta, já que, também elas, podem contribuir para racionalização técnica das operações industriais. [...] E, no entanto, se a autogestão não se tornar numa outra coisa, numa coisa que seja um pouco mais do que gerir as formas técnicas existentes, se o trabalho não for transformado numa atividade livre e criativa, então a autogestão é apenas um falso desafio. Deste modo, é o próprio conceito de autogestão que necessita ser reexaminado. [...] Sem o seu significado ético, as suas implicações de natureza pessoal moral, a noção de selfhood arrisca dissolver-se numa espécie de individualismo, vazio e sem sentido, que lembra, por vezes, esse egoísmo da personalidade humana que emerge à superfície da sociedade burguesa como os resíduos das operações industriais. [...] Não deixa de ser significativo que este mesmo empobrecimento do trabalhador tenha sido concebido por Marx e Engels como a prova mais evidente do caráter revolucionário do proletariado. E foi também a partir deste terrível mal-entendido que o sindicalismo acabou por se tornar uma concepção marxista de mobilização social. Ambos encaram a fábrica mais como uma espécie de escola da revolução, do que propriamente como a sua ruína. Ambos acabam por atribuir à fábrica um papel estrutural de primeira ordem na mobilização e na movimentação social. Contudo, tanto para melhor como para pior, Marx e Engels exprimem com muito mais determinação este ponto de vista. O proletariado marxista não é senão um instrumento da História. A sua despersonalização, enquanto categoria exclusiva da economia política, libertou-o paradoxalmente de qualquer caráter humano, reduzindo a sua individualidade à sua necessidade. Ele deixa de possuir uma vontade própria, para passar a ter apenas uma vontade histórica. Ele é, enquanto classe em estado bruto, um instrumento histórico no sentido mais estrito. Desta forma, para Marx, "a questão não é saber o que o proletariado quer ou considera como sua finalidade, mas sim, antes de tudo, saber qual a natureza do proletariado, para depois então saber, a partir da sua própria natureza, aquilo que ele terá necessariamente de fazer". [...] Neste sentido, é preciso considerar concretamente as alternativas que podem transformar o trabalho árduo num jogo agradável e lúdico. Com efeito, uma colheita de trigo pode ser feita de duas maneiras quase opostas: a primeira, onde o amor, a festa, o canto e a alegria têm um lugar de relevo, contrasta com a segunda, onde o trabalho é feito com a monotonia das máquinas por um pequeno grupo de trabalhadores. [...] Uma nova tecnologia está hoje e emergir. Ela é tão importante para o futuro como a fábrica o é para o presente. Ela traz consigo um critério de seleção das técnicas atualmente existentes, a partir do seu interesse ecológico e da sua relação com a liberdade humana Nos seus aspectos de maior relevo, estas técnicas são fortemente descentralizadoras, isto é, humanas na sua própria escala, de construção muito simples e de orientação compatível com a natureza. Elas vão buscar a sua energia ao sol e ao vento, bem como aos resíduos urbanos e aos resíduos agrícolas. A agricultura alimentar pode tornar-se uma forma de atividade espiritual, materialmente rentável. Ela é muito positiva para o ambiente e favorece também, o que é ainda talvez mais importante, a autonomia das pessoas e das comunidades. Esta nova concepção da técnica pode ser designada por "tecnologia popular", os pequenos jardins comunitários, espontaneamente criados pelos habitantes dos guetos de Nova Iorque, os painéis solares feitos de forma quase artesanal e que aparecem com cada vez mais freqüência sobre os telhados, e finalmente os pequenos moinhos a vento exprimem, todos em conjunto, a vontade de iniciativa autônoma de comunidades anteriormente passivas. Aquilo que importa mais não é saber se uma pequena cooperativa alimentar pode substituir um supermercado, se um pomar comunitário tem ou não capacidades para suplantar uma empresa agrícola industrial ou se um moinho de vento pode porventura produzir tanto como uma central nuclear. O que importa é que estas cooperativas, estes pomares e estes moinhos são, de certo modo, o ressurgimento de uma capacidade de autodeterminação pessoal, inacessível às coisas maximizadas, e ainda ao ressurgimento de um sentimento de auto-competência, que em geral é negado ao cidadão comum. A imagem da cidade enquanto fábrica, imagem muito divulgada, foi já tão longe, que as formas técnicas e institucionais alternativas têm também de ser suficientemente radicais e profundas.
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