CartografiaDaGrupalidade

Elementos para uma cartografia da grupalidade

Trechos de Elementos para uma cartografia da grupalidade. Apenas os trechos sobre capturas foram selecionados, mas vale a pena ler o texto todo.

  [...]

  Como mapear "etologicamente" os afectos de uma pessoa? É óbvio que os afectos
  de que é capaz um burocrata e um dançarino não são os mesmos. O poder de ser
  afetado de um burocrata, basta ler Kafka para ter uma idéia claríssima. E a
  capacidade de ser afetado e de afetar de um artista, qual é? Será que a de um
  dançarino é a mesma que a de um ator? Será que a de um acrobata é a mesma que
  a do jejuador? De novo Kafka, vejam-se aqueles pequenos contos sobre artistas,
  em O Artista da Fome, por exemplo.

  [...]

  Então somos um grau de potência, definido por nosso poder de afetar e de ser
  afetado, e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma
  questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa.
  Vamos aprendendo a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém,
  o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de
  existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui,
  e, por conseguinte, o que resulta em alegria, ou tristeza. Vamos aprendendo a
  selecionar nossos encontros, e a compor, é uma grande arte. A tristeza é toda
  paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda
  paixão que aumenta nossa potência de agir. Isso abre para um problema ético
  importante: como é que aqueles que detêm o poder fazem questão de nos afetar
  de tristeza? As paixões tristes como necessárias ao exercício do poder.
  Inspirar paixões tristes ¿ é a relação necessária que impõe o sacerdote,
  o déspota, inspirar tristeza em seus sujeitos. A tristeza não é algo vago,
  é o afecto enquanto ele implica a diminuição da potência de agir. Existir é,
  portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois pólos, essas
  subidas e descidas, elevações e quedas.

  Então, como preencher o poder de afetar e ser afetado que nos corresponde?
  [...] O que Espinosa quer dizer é que as paixões não são um problema, elas
  existem e são inevitáveis, não são boas nem ruins, são necessárias no encontro
  dos corpos e nos encontros das idéias. O que, sim, numa certa medida, é evitável
  são as paixões tristes, que nos escravizam na impotência. Em outros termos,
  apenas por meio das paixões alegres nós nos aproximamos daquele ponto de
  conversão em que podemos deixar de apenas padecer, para podermos agir; deixar
  de ter apenas paixões, para podermos ter ações, para podermos desdobrar nossa
  potência de agir, nosso poder de afetar, nosso poder de sermos a causa direta
  das nossas ações, e não de obedecermos sempre a causas externas, padecendo
  delas, estando sempre à mercê delas.

  Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemão de que afectos é capaz,
  não sabemos ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de experimentação,
  mas também de prudência. É essa a interpretação etológica de Deleuze: a ética seria
  um estudo das composições, da composição entre relações, da composição entre poderes.
  A questão é saber se as relações podem compor-se para formar uma nova relação mais
  ¿estendida¿, ou se os poderes podem se compor de modo a constituir um poder mais
  intenso, uma potência mais ¿intensa¿. Trata-se então, diz Deleuze, das ¿sociabilidades
  e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao
  infinito? Como um ser pode tomar um outro no seu mundo, mas conservando ou respeitando
  as relações e o mundo próprios?¿(1)

  A partir daí, pode-se pensar a constituição de um ¿corpo¿ múltiplo com suas
  relações específicas de velocidade e de lentidão. Pensar um corpo grupal como essa
  variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre
  potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão. Mas como pensar
  a consistência do ¿conjunto¿? Deleuze e Guattari invocam com freqüência um ¿plano de
  consistência¿, um ¿plano de composição¿, um ¿plano de imanência¿. Num plano de composição,
  trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão,
  a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos,
  liberando movimentos, extraindo partículas e afectos. É um plano de proliferação,
  de povoamento e de contágio. Num plano de composição o que está em jogo é a
  consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados. Como diz a
  conclusão praticamente ininteligível de Mil Platôs, o que se inscreve num plano de
  composição são os acontecimentos, as transformações incorporais, as essencias nômades,
  as variações intensivas, os devires, os espaços lisos ¿ é sempre um corpo sem órgãos.

  Seria preciso agora pensar a questão do comum, tão importante quando se considera um
  grupo, uma sociedade, um conjunto humano. Uma constatação trivial é evocada com
  insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Toni Negri, Giorgio Agamben,
  Paolo Virno, Jean-Luc Nancy, ou mesmo Maurice Blanchot. A saber, a de que vivemos hoje
  uma crise do ¿comum¿. As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum,
  e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram
  definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação
  consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais.

  Se de fato há hoje um seqüestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação
  do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas,
  transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais
  figurações do ¿comum¿ começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro. 

  [...]

  Ora, hoje, tanto a percepção do seqüestro do comum como a revelação do
  caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições
  muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e
  não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação,
  e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico
  atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em
  que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato,
  que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como
  espaço público, seja como política, hoje o comum é o espaço produtivo
  por excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira
  inédita na história, pois no seu núcleo propriamente econômico e 
  biopolítico, a prevalência do ¿comum¿. O trabalho dito imaterial, a
  produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da
  emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que
  nos é mais comum, a saber, a linguagem, e seu feixe correlato, a
  inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação e, por
  conseguinte, a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos
  vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de
  relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de
  forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de um
  capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de
  rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para
  trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma
  linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido
  teria um saber exclusivamente auto-referido? Pôr em comum o que é comum,
  colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o
  que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a
  inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente
  corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela
  apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do
  comum, pela vampirização do comum empreendida pelas diversas empresas,
  máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo não
  pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.

  [..]

  O comum era o logos. A expropriação do comum numa sociedade do
  espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é
  seqüestrada por um regime democrático-espetacular, e a linguagem se
  autonomiza numa esfera separada, de modo tal que ela já não revela nada
  e ninguém se enraiza nela, quando a comunicatividade, aquilo que
  garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação
  (15), atingimos um ponto extremo do niilismo.

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