CidadeDegenerada

Uma cidade degenerada

Trechos de Uma cidade degenerada

O arquiteto Paulo Mendes da Rocha ergue e destrói a paisagem urbana

   [...]

   CC: Quais são os lugares-comuns sobre o trânsito, por exemplo?

   PMR: É como se tivéssemos inventado uma máquina de produzir veneno e, todo dia, nos
   empenhássemos em aprimorá-la. A questão dos transportes é fundamental. Não se trata,
   puramente, de introduzir conforto. Trata-se de ver que, queimar petróleo para transportar
   uma pessoa de 60 quilos numa lataria de 700 quilos, que não anda, é um erro grave.
   É repugnante ver a cidade congestionada de carros que não andam. A questão não é fazê-los
   andar, é ver que isso não tem saída, o transporte individual é uma bobagem.

   CC:  Então é uma bobagem construir túneis e viadutos?

   PMR: Vai se aprimorando a máquina do veneno. E já não importa que o carro não ande,
   porque você vê todo mundo lá dentro falando no celular, usando o laptop...

   [...]

   CC: O senhor sempre diz que não existe espaço privado, que todo espaço é público.
   Esse espírito agressivo está ligado à inversão dessa lógica, à tentativa de
   transformar a cidade em guetos privados?

   PMR: Você já viu isso? Será que me repito muito? Por isso fico preocupado em dar
   entrevistas. Mas, sim, não há espaço privado. A arquitetura constrói espaços para
   amparar a imprevisibilidade da vida, não para determinar comportamentos. A cidade
   é o lugar da liberdade. Você não pode constranger as pessoas no espaço público com
   dificuldades. Caso contrário, elas desenvolvem a consciência de espaço no espaço
   imaginado dentro de si, num individualismo atroz. 

   [...]

   CC: Seu colega Jorge Wilheim perguntou, num texto, quantos arquitetos diriam não
   para um projeto de edifício neoclássico, tão em voga em São Paulo. Quantos diriam?

   PMR: Todos diriam não. Mas, conformistas, vão e fazem. Pense no nazismo e no fascismo.
   Não aderiram todos? O mercado é um horizonte falso e, se ficar no comando do processo,
   só produzirá asneiras como a dos neoclássicos. Isso é um engodo de quem precisa
   continuar com o negócio.

   CC: A classe média passou a gostar disso de fato ou, simplesmente, não tem mais gosto?

   PMR: A classe média alta é a classe mais baixa da população. Ela está tão desesperada
   que corre atrás de qualquer coisa que se diga. Como ela é totalmente conformista
   desfrutante, a propaganda diz o que ela deve dizer e ela diz. O método de produzir
   a decadência para depois corrigir, a idéia do “quanto pior melhor”, é elaborado pela
   classe dominante. Aí você chega a um limite em que só a guilhotina resolve. Ninguém
   agüenta meia de seda, renda de florzinha, cabeleira postiça... Eles mesmos se matam.
   Mas vamos corrigir as palavras. A classe dominante, no Brasil, é a mais pobre.
   A exigência maior de uma cidade como São Paulo é habitação, transporte e saúde. 

   [...]

   CC: E o negócio agora é terraço gourmet, com churrasqueira.

   PMR: Se você faz um edifício de 25 andares com uma churrasqueira em cada terraço,
   a imagem que me ocorre é a do bife que se vende em São Paulo, num cilindro, fumegante
   e muito cheiroso. O prédio inteiro vira isso, como é o nome? Churrasco grego?
   É de um ridículo supremo. 

   [...]

   CC: E quem pagou para erguer estes prédios no centro fugiu daqui...

   PMR: É a contradição de que te falei. A classe chamada alta produz o próprio desastre.
   Ela abandonou a cidade e a população pobre ocupou-a. Você abandona uma cidade e funda
   outra, como Alphaville, porque teme a liberdade. A avenida São Luís, feita de habitações
   de alto padrão, não durou 15 anos. Mas talvez se alimente a desvalorização para, um dia,
   criar-se um plano de revitalização, favorecendo, de novo, a especulação. Essa não é uma
   boa política. Há grandes vazios na cidade. Como revitalizar o centro histórico?
   Transformando botequim em centro cultural? O botequim era um centro cultural.

   CC: O senhor refez o prédio da Pinacoteca e, ao mesmo tempo, tem uma visão pessimista
   em relação à revitalização do centro a partir da cultura. Por quê?

   PMR: Eu não quero dizer que o que se tem feito seja ruim. Mas recuso a idéia do
   panegírico da cultura sem reconhecer que a cidade, na totalidade, é a suprema
   manifestação da cultura. A cidade é o lugar da reprodução do conhecimento na fala diária
   dos homens que precisam conviver. Se você faz o panegírico do edifício especificamente
   cultural, primeiro você nega que, antes, ali havia cultura. A antiga sede do Banco do
   Brasil, em São Paulo, é um edifício notável, feito para abrigar um banco. Mas fica lá
   dentro um auditório péssimo. Eu fico malvisto, porque vão dizer: ‘Como? O centro
   cultural é uma maravilha’. Mas o centro histórico tem uma beleza que vive sendo negada.

   [...]

   CC: Como o senhor vem para o escritório?

   PMR: A pé ou de táxi. O tráfego tornou-se tão problemático que é melhor um profissional
   dirigindo o carro do que eu. O automóvel desenvolve 150 quilômetros por hora e anda a 5.
   Mas as pessoas querem andar de carro. A classe média não quer freqüentar a liberdade.

   CC: Sem se dar conta disso.

   PMR: Sabe que, sem fundamento lógico, acho que eles têm absoluta consciência e estão
   desesperados? É o imobilismo do aflito, como o naufrágio do Titanic: a orquestra não
   parou de tocar. Faz de conta que esta nossa conversa se degenerou, a ponto de podermos
   dizer o que estamos dizendo. Se você imaginar, por hipótese, uma pessoa que tenha um
   razoável conhecimento da literatura universal, teria ou não consciência do que estamos
   falando? Teria. Isso quer dizer que essa classe não lê, ou seja, ela já está degenerada. 

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