CriseTrocadaEmGraudos
A crise, trocada em graúdos
Trechos (na verdade é praticamente a íntegra) de "A crise, trocada em graúdos", entrevista com Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, da Unicamp, publicada na Caros Amigos 131.
Frase selecionada
É preciso entender que a crise atual neasce exatamente da vitória sobre a anterior.
Trechos selecionados
Pergunta: O megainvestidor George Soros escreveu na segunda quinzena de janeiro que esta é a maior crise do capitalismo nos últimos sessenta anos. O senhos concorda com isso? Resposta: Eu realmente não se se esta é a maior crise, porque há semelhanças com outras crises, mas o capitalismo evoluiu, se transforma e cada crise tem características próprias. Mas seguramente esta é uma das maiores crises desde a segunda metade do século 20. Podemos dizer que é a primeira crise mundial do capitalismo financeiro desregulado. Dos anos 1930 até meados dos anos 1970, as reformas que foram introduzidas nos Estados Unidos e na Europa, dentro do chamado consenso keynesiano, possibilitaram três décadas de crescimento e eestabilidade. Essas reformas impuseram controles aos sistemas financeiros, por exemplo, a separação entre bancos comerciais e bancos de investimentos das seguradoras, o que impediu que os bancos comerciais, responsáveis pela criação de moeda e pelo sistema de pagamentos, participassem de atividades especulativas e arriscadas. E isso correspondia a um estágio avançado da luta social nos países desenvolvidos, que se completava com a proteção dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e assalariados em geral. Pergunta: E de lá pra cá? Resposta: No final dos anos 1960, a recuperação européia do pós-guerra, o reerguimentos japonês começaram a ameaçar a supremacia econômica americana, particularmente provocando uma mudança de sinal na balança comercial dos Estados Unidos. O balanço de pagamentos americano já era deficitário, por conta das despesas militares, da saída do investimento externo americano para a Europa e para a Ásia. A hemorragia do balanço de pagamentos dos Estados Unidos suscitou a reação dos europeus, que passaram a depositar os dólares excedentes no chamado euromercado. Nesse período, e até a crise de petróleo em 1973, o Brasil aí abasteceu a sua dívida externa. Mas o que importa é que os europeus pressionavam as reservas em ouro de Fort Knox, nos Estados Unidos. Em 1971, o presidente Richard Nixon decretou unilateralmente a inconversibilidade do dólar em ouro. Assim, o ativo final de reserva passou a ser não mais o ouro, mas o título de dívida do governo dos Estados Unidos. Os europeus, mais uma vez, no fim dos anos 1970, tentaram substituir o dólar por um ativo emitido pelo Fundo Monetário Internacional, os Direitos Especiais de Saque [... mas,] o presidente do Fed, o banco central americano, Paul Volcker, deixou os europeus falando sozinhos [...] e deflagrou o famoso choque de juros de outubro de 1979, aumentando até 14 por cento e provocando uma quebradeira geral, sobretudo nos endividados, como o Brasil. Pergunta: É então que surge o neoliberalismo? Resposta: Não por acaso, o Partido Conservador da senhora Thatcher ganhou as eleições de 1979 e Reagan assumiu em 1980. É uma ilusão imaginar que os dois propuseram a agenda neoliberal. Muito ao contrário, a crise deu força aos que trabalhavam sem descanso para dar um fim a "tudo aquilo". Tudo aquilo eram as instituições criadas na posteridade da Segunda Guerra para impedir que o capitalismo repetisse experiências catastróficas, como a crise de 1929. A idéia era desregulamentar, liberalizar, promover a desrepressão financeira. Nesse ambiente, com o dólar fortalecido, os Estados Unidos começaram as idéias e as regras do conjunto de proposições ditas neoliberais. Foi aí que os Estados Unidos passaram de credores a devedores, e esse fato permitiu que os bancos fossem salvos da inadimplência dos devedores sobreranos da periferia e abarrotassem suas carteiras de títulos do governo mais poderoso do mundo. Os títulos americanos, por sua liquidez e segurança, passaram a servir de lastro para operações de crédito "securitizadas", ou seja, um empréstimo não ficava na carteira dos bancos até o seu vencimento, mas virava um título negociado diariamento nos mercados secundários. O detentor do título poderia se livrar dele a qualquer momento, caso fosse necessário. Isso tornou os novos mercados financeiros muito dependentes da liquidez e das expectativas a respeito do movimento de preços desses papéis. Já estamos entre a segunda metade dos anos 1980 e a primeira metade dos anos 1990. Pergunta: O que aconteceu com os controles sobre os capitais? Resposta: Essa expansão da finança dita de mercado foi acompanhada de uma enorme pressão para que os países que ainda mantinham controles sobre a entrada de capitais promovessem a abertura financeira. Os bastiões foram caindo um a um. O Japão foi a primeira vítima da finança globalizada, em 1989: sucumbiu diante da valorização do iene e dos efeitos de uma bolha imobiliária e bursátil, que prostrou o país na estagnação durante dez anos. Depois vieram naturalmente as crises do México, da Ásia, dos Brasil, da Rússia, da Argentina. Em 2000 estourou a famosa bolha da tecnologia da informação, mas o Fed interveio, com sucesso, e impediu o alastramento da crise. Pergunta: E agora? Resposta: É preciso entender que a crise atual neasce exatamente da vitória sobre a anterior. Os mercados têm certeza de que serão salvos pelo papai Estado. Explico: a baixa dos juros patrocinada por Alan Greenspan, diretor do Fed, deu em 2000 fôlego adicional ao consumo das famílias americanas, que aumentaram seu endividamento de cerca de 85 por cento para mais de 120 por cento do PIB dos Estados Unidos. Os juros baixos e estáveis também animaram os bancos, que passaram a conceder crédito sem avaliar o risco do devedor. Esses são os créditos subprime, cuja figura mais exótica é o crédito Ninja, concedido ao cidadão que não tem emprego, não tem renda e não tem ativos. Muitos imigrantes ilegais tomaram empréstimos para comprar a casa própria. São esses que estão voltando agora para seus países de origem. A inventividade dos mercados construiu uma verdadeira pirâmide de papéis, com empréstimos de qualidade variada, misturando o bom, o ruim e o éssimo. Quando explode a crise, toda a cadeira da felicidade entra em pane. A pirâmide começa a desmoronar, os bancos hesitam em conceder créditos uns aos outros e a todos os demais. É a desconfiança geral. Pergunta: Soros diz que a crise pode ter dois desenlaces: ou, ao seu final, daqui a anos, os Estados Unidos aceitam perder a precedência para a China ou vai acontecer o que ele chama de "coisa pior". Qual é o seu comentário? Resposta: Dos anos 1990 para cá, as manufaturas chinesas abasteceram o consume e a produção americana a preços baixos e os chineses usaram as suas reservas (a poupança dos chineses) para financiar os déficits dos Estados Unidos. Há bens que vêm para o mal. Sem a China, os Estados Unidos não teriam levado adiante o delírio da expansão exuberante do crédito e o superendividamento das famílias. Acho que a alternativa de Soros é um tanto simplista. A relação Estados Unidos-China é uma relação contraditória no mais lídimo sentido marxista. É difícil dizer cmoo ela vai ser "superada", se é que vai ser. Pergunta: E o Brasil? Resposta: Por conta dessa singular relação Estados Unidos-China-Ásia-resto do mundo, o Brasil foi enormement beneficiado por um ciclo de preços elevados de commodities agrícolas e minerais. Estamos hoje com um superávit de 40 bilhões de dólares, apesar do déficit no intercâmbio de produtos manufaturados. O superávit do agronegócio é maior do que o superávit comercial total. Isso demonstra que dependemos muito da demanda chines e americana. Se essa demanda diminuir significativamente, o superávit comercial brasileiro vai cair, provavelmente não o suficiente para gerar uma crise cambial, como no passado, porque a demanda de alimentos, na crise, cai menos do que outros produtos, não de primeira necessidade. Mas é bom ficar de olho.
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