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Entrevista com André Gorz

Techos de Entrevista com André Gorz:

  Dentro em breve, as três categorias fundamentais da economia política -
  o trabalho, o valor e o capital - não mais poderão ser definidas em termos
  aritméticos, nem medidas por parâmetros unitários. Além do mais, justamente
  em função dessa característica de não mensurabilidade, fica cada vez mais
  difícil aplicar conceitos como mais-valia, sobre-trabalho, valor de troca,
  produto social bruto.

  [...]

  Consideremos a capacidade artística, a imaginação e a criatividade, requisitos
  muito demandados no âmbito publicitário, no marketing, no design, na inovação,
  uma vez que são necessários para conferir às mercadorias - mesmo àquelas mais
  banais - um valor simbólico e incomparável. A publicidade e o marketing
  constituem uma das maiores, ou talvez mesmo a maior indústria cognitiva: quando
  conferem a essas mercadorias qualidades únicas e incomparáveis, as empresas podem
  vender seus produtos, pelo menos por algum tempo, a preços mais elevados. Detêm
  uma espécie de monopólio e buscam assim uma renda monopolista, contornando
  temporariamente a lei do valor; em outras palavras, freiam a baixa do valor de
  troca das mercadorias ainda que seu custo de produção seja cada vez menor em
  termos de horas de trabalho e de pessoal alocado.

  [...]

  Os saberes, no sentido de competência e procedimentos técnicos e científicos,
  podem ter um papel similar, mas, em termos do alcance de seus efeitos e de seu
  valor de uso têm uma importância bem mais direta. Diferentemente da capacidade
  artística e de inovação, as competências e os procedimentos podem ser transmitidos
  ou formalizados também separadamente, por quem quer que faça uso deles. Podem ser
  transcritos em formato digital e informatizados para fins produtivos sem a
  necessidade de se agregar qualquer outro aporte humano. Deste ponto de vista,
  o saber é capital fixo, é meio de produção. Mas apresenta uma diferença fundamental
  com relação aos meios de produção do passado: é reprodutível, praticamente a custo
  zero, em quantidades ilimitadas. Por mais que tenham sido dispendiosas as pesquisas
  que lhe deram origem, o saber digitalizável tende a tornar-se acessível e
  utilizável a custo zero. Por ser reproduzido e utilizado em milhões de cópias,
  seus custos originais tornam-se praticamente irrelevantes. Isto vale para todos
  os programas de software, bem como para o conteúdo de saber embutido nos medicamentos.
  Para que funcione como capital fixo e admita a extração de mais-valia, o saber deve
  necessariamente converter-se em propriedade monopolista, tutelada por uma patente
  que assegure a seu possuidor uma renda por esse monopólio. A cotização em bolsa de
  capital constituído por saber dependerá das expectativas de renda futura. Sobre esta
  base podem ser criados gigantescas bolhas financeiras que, um belo dia, estouram de
  repente. O crack do mercado de capitais, prenunciado desde a dos anos 90, mostra bem
  o quanto é difícil transformar o saber em capital financeiro e fazê-lo funcionar como
  capital cognitivo.

  [...]

  Global - O senhor disse, em mais de uma ocasião, que a economia cognitiva
  antecipa a necessidade de uma outra economia, de outra sociedade, cuja
  possibilidade prática já está se delineando.

  Gorz - Sim: o saber não é uma mercadoria qualquer e não se presta a ser
  tratado como propriedade privada. Aqueles que possuem o saber não se privam de o
  continuar transmitindo indefinidamente. Quanto mais se difunde o saber, mais rica
  se torna uma sociedade. Por sua própria natureza, o saber necessita ser tratado como
  um bem comum, precisa ser considerado, antes de mais nada, como o resultado de um
  trabalho social e coletivo. Privatizá-lo quer dizer limitar sua acessibilidade, seu
  valor de uso social. Nos últimos dez ou vinte anos isto tem-se tornado cada vez mais
  evidente, tanto que se formou uma frente anticapitalista mundial de luta contra a
  indústria cognitiva: podemos dar como exemplo a indústria química e farmacêutica e
  também a do software, em particular a Microsoft. Na verdade, o capitalismo cognitivo
  não se limita a apoderar-se do saber no qual teve origem, quer também privatizar
  aquilo que é incontestavelmente bem comum, como o genoma de plantas, animais e o
  humano. E se apropria a custo zero do patrimônio cultural comum para utilizá-lo
  como capital cultural ou capital humano. O termo capital humano designa
  principalmente as capacidades humanas e as formas de saber não formalizáveis que
  os indivíduos desenvolvem diariamente em suas relações interpessoais. São
  instrumentalizadas e exploradas no capitalismo cognitivo como o definem na França
  os teóricos próximos a Toni Negri - não apenas as horas de trabalho prestadas, mas
  também o tempo invisível dedicado ao próprio crescimento cultural e humano. Todas
  as atividades individuais desenvolvidas fora do tempo de trabalho e dedicadas
  à realização pessoal podem ser, portanto, consideradas atividades produtivas.
  Essas atividades tornam-se então uma das principais fontes de produtividade e
  criação de valor. Em uma verdadeira sociedade cognitiva, a economia deveria estar
  a serviço da cultura e da realização de si e não o contrário, como ocorre hoje.
  De resto, este conceito já o encontramos em Marx, quando escreve que a verdadeira
  riqueza é '''"o desenvolvimento de todas as energias humanas enquanto tais, não
  mensuradas por um parâmetro constituído a priori"'' [Grifo do Rhatto]. É sobre
  esse princípio que se baseia a  reivindicação de uma renda de vida garantida.

  [...]

  Global - O senhor vem criticando os "abre alas" da inteligência artificial
  e da vida artificial que preparam não mais uma sociedade do saber mas uma
  civilização pós-humana..

  Gorz - Este é para mim um ponto de suma importância. O filósofo alemão
  Erich Hörl demonstrou, por exemplo, em uma tese realmente magistral, que, no
  curso dos últimos 150 anos, a ciência tem-se distanciado cada vez mais da realidade
  perceptível através dos sentidos, da realidade sensorial: no mundo real, um pensamento
  mais matematizante privilegia somente as estruturas que podem ser enquadradas em termos
  matemáticos. Por exemplo, a linguagem matemática dos cálculos informatizáveis tem
  contribuído para alienar não apenas a ciência mas também o capitalismo dos aspectos
  do sentido e das interações sociais, excluindo como não real tudo o que não seja
  calculável. À custa de processos de pensamento não sensoriais e matemáticos, têm-se
  chegado a uma condição ambiental e a um tipo de vida que já não é, física e mentalmente,
  a medida do homem. Por isso os detentores do poder têm tido a necessidade de criar seres
  humanos mais eficientes. A loucura do poder econômico e militar e a obsessão eficientista
  criaram a necessidade de inteligência artificial, de máquinas humanas artificiais.
  Só poderemos efetivamente falar de uma sociedade do saber quando a ciência e a economia
  não estiverem mais sujeitas aos imperativos do capital, quando perseguirem objetivos
  políticos sociais, ecológicos e culturais. Idéias como essa são hoje compartilhadas por
  um número ainda reduzido, mas em constante ascensão, de expoentes do mundo científico.

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