GeopoliticaDaCafetinagem
Geopolítica da cafetinagem
Trechos de Geopolítica da cafetinagem:
Sabe-se que políticas de subjetivação mudam com as transformações históricas, pois cada regime depende de uma forma específica de subjetividade para sua viabilização no cotidiano de todos e de cada um. É neste terreno que um regime ganha consistência existencial e se concretiza; daí a idéia de “políticas” de subjetivação. No entanto, no caso específico do neoliberalismo, a estratégia de subjetivação, de relação com o outro e de criação cultural adquire uma importância essencial, pois ganha um papel central no próprio princípio que rege o capitalismo em sua versão contemporânea. É que é, fundamentalmente, das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e criação, que este regime se alimenta, a ponto de ter sido qualificado mais recentemente como “capitalismo cognitivo” ou “cultural”.[iii] De posse destas balizas, posso agora propor uma cartografia das mudanças que tem levado a arte a colocar esse tipo de questão. Tomarei como ponto de partida os anos 1960/70. [...] O “capitalismo cognitivo” ou “cultural”, concebido justamente como saída para a crise provocada pelos movimentos dos anos 1960/70, incorporou os modos de existência que estes inventaram e apropriou-se das forças subjetivas, em especial da potência de criação que então se emancipava na vida social, a colocando de fato no poder, tal como haviam reivindicado aqueles movimentos. Entretanto, hoje sabemos que esta ascensão da imaginação ao poder é uma operação micropolítica que consiste em fazer de sua potência, o principal combustível de uma insaciável hipermáquina de produção e acumulação de capital – a tal ponto que se pode falar de uma nova classe trabalhadora que alguns autores chamam de “cognitariado”[v]. É esta força, assim cafetinada, que com uma velocidade exponencial vem transformando o planeta num gigantesco mercado e, seus habitantes, em zumbis hiperativos incluídos ou trapos humanos excluídos. Na verdade, estes dois pólos opostos são frutos interdependentes de uma mesma lógica e todos os destinos tendem a perfilar-se entre eles. Esse é o mundo que a imaginação cria em nossa contemporaneidade. É de se esperar que a política de subjetivação e de relação com o outro que predomina neste cenário seja das mais empobrecidas. [...] Só recentemente esta situação vem se tornando consciente, o que tende a levar à quebra do feitiço. Isto transparece nas diferentes estratégias de resistência individual e coletiva que se avolumam nos últimos anos, particularmente por iniciativa de uma nova geração que não se identifica em absoluto com o modelo de existência proposto e se dá conta de sua manobra. [...] Mas a dificuldade de resistir à sedução da serpente do paraíso em sua versão neoliberal agrava-se mais ainda em países da América Latina e da Europa do Leste que, como o Brasil, encontravam-se sob regimes totalitários no momento da instalação do capitalismo financeiro. Não esqueçamos que a abertura democrática destes países, que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em parte à chegada do regime pós-fordista para cuja flexibilidade, a rigidez dos sistemas totalitários constituía um estorvo. [...] Em sua penetração em contextos totalitários, o capitalismo cultural tirou vantagem do passado experimental, especialmente ousado e singular em muitos daqueles países, mas também e sobretudo das feridas das forças de criação resultantes dos golpes que haviam sofrido. [...] Se focarmos agora nosso olhar micropolítico no Brasil, descobriremos um traço ainda mais específico no processo de instalação do neoliberalismo e da clonagem que operou dos movimentos dos anos 1960/70. É que estes mesmos movimentos já traziam aí uma especificidade, pela reativação de uma certa tradição cultural do país que se convencionou chamar de “antropofagia”. [...] O serviço que o movimento modernista brasileiro prestou à cultura do país ao iluminar e nomear esta política, foi o de valorizá-la; isso possibilitou a tomada de consciência desta singularidade cultural que pode assim ser afirmada, a contrapelo da idealização da cultura européia, herança colonial que marcava a inteligentzia do país. Cabe notar que esta identificação submissa ainda hoje marca boa parte da produção intelectual brasileira, a qual em alguns de seus setores apenas substituiu seu objeto de idealização pela cultura norte-americana, como é especialmente o caso no campo da arte. Nos anos 1960/70, como vimos, as invenções do início do século deixaram de se restringir às vanguardas culturais; passadas algumas décadas, elas haviam contaminado a política de subjetivação, gerando mudanças que viriam a expressar-se mais contundentemente na geração nascida após a segunda guerra mundial. Para esta geração, a sociedade disciplinar que atingia seu apogeu naquele momento tornou-se absolutamente intolerável, o que a fez lançar-se num processo de ruptura com este padrão em sua própria existência cotidiana. A subjetividade flexível tornou-se assim o novo modelo, próprio de uma contracultura. É neste processo que, no Brasil, o ideário antropofágico foi reativado, o que aparece mais explicitamente em movimentos culturais como o Tropicalismo, tomado em seu sentido mais amplo[viii]. A convocação das marcas desta tradição inscritas em nosso corpo dava à contracultura no país uma liberdade de experimentação especialmente radical, tendo gerado propostas artísticas de grande força e originalidade. Ora, esta mesma singularidade que tanto fortalecera os movimentos contraculturais no Brasil, agravou por outro lado os efeitos da clonagem dos mesmos, operada pelo neoliberalismo. É que o know how antropofágico dá aos brasileiros um jogo de cintura especial para adaptar-se aos novos tempos. Neste país, ficamos embevecidos por sermos tão contemporâneos, tão à vontade na cena internacional das novas subjetividades pós-identitárias, de tão bem aparelhados que somos para viver esta flexibilidade pós-fordista (o que nos torna por exemplo campeões internacionais de publicidade e nos posiciona entre os grandes no ranking mundial das estratégias midiáticas[ix]). No entanto, esta é apenas a forma que tomou a voluptuosa e alienada entrega a este regime em sua aclimatação em terras brasileiras, fazendo de seus habitantes, principalmente os urbanos, verdadeiros zumbis antropofágicos. Características previsíveis num país de passado colonial? Seja qual for a resposta, um sinal evidente desta identificação pateticamente a-crítica com o capitalismo financeiro de uma parcela da própria elite cultural brasileira, é o fato de que a liderança do grupo que reestruturou o Estado brasileiro engessado pelo regime militar, fazendo do processo de redemocratização o seu alinhamento ao neoliberalismo, compõe-se, em grande parte, de intelectuais de esquerda, tendo muitos deles vivido no exílio no período da ditadura. [...] A Antropofagia em si mesma é apenas uma forma de subjetivação, de fato distinta da política identitária. No entanto, isto não garante nada pois qualquer forma pode ser investida segundo diferentes éticas, das mais críticas às mais execravelmente reacionárias [...] O que distingue tais éticas [...] está na estratégia de criação de territórios e, implicitamente, na política de relação com o outro: para que este processo se oriente por uma ética de afirmação da vida é necessário construir territórios com base nas urgências indicadas pelas sensações – ou seja, os sinais da presença do outro em nosso corpo vibrátil. É em torno da expressão destes sinais e de sua reverberação nas subjetividades que respiram o mesmo ar do tempo que vão se abrindo possíveis na existência individual e coletiva. [...] Ora, não é absolutamente esta a política de criação de territórios que tem predominado no Brasil: o neoliberalismo mobilizou o que esta tradição tem de pior, a mais baixa antropofagia. A “plasticidade” da fronteira entre público e privado e a “liberdade” de apropriação privada dos bens púbicos – levada na brincadeira e exibida com orgulho – é uma de suas piores facetas, certamente impregnada da herança colonial. É exatamente para esta faceta da antropofagia que Oswald de Andrade chamara a atenção para designar seu lado reativo. Esta linhagem intoxica a tal ponto a sociedade brasileira, especialmente suas elites econômicas e políticas, que seria ingênuo imaginar que ela possa desaparecer num passe de mágica. [...] Problematizar a confusão entre as duas políticas da subjetividade flexível de modo a intervir efetivamente neste campo, contribuindo assim para romper o feitiço da sedução que sustenta o poder neoliberal no coração do desejo, passa incontornàvelmente por tratar a doença que resultou da infeliz confluência no Brasil de três fatores históricos que incidiram negativamente em nossa imaginação criadora: a traumática violência pela ditadura, a cafetinagem pelo neoliberalismo e a ativação de uma baixa antropofagia. Esta confluência tornou sem dúvida mais exacerbados, o rebaixamento da capacidade crítica e a identificação servil com o novo regime. [...] Um primeiro bloco de perguntas seria relativo à cartografia da cafetinagem. Como se opera em nossa vitalidade o torniquete que nos leva a tolerar o intolerável, e até a desejá-lo? Por meio de que processos, nossa vulnerabilidade ao outro se anestesia? Que mecanismos de nossa subjetividade nos levam a oferecer nossa força de criação para a realização do mercado? E nosso desejo, nossos afetos, nosso erotismo, nosso tempo? Como todas estas nossas potências são capturadas pela fé na promessa de paraíso da religião capitalista? Que práticas artísticas têm caído nesta cilada? O que nos permite identificá-las? O que faz com que elas sejam tão numerosas? Um outro bloco de perguntas, na verdade inseparável do primeiro, seria relativo à cartografia dos movimentos de êxodo. Como liberar a vida destes seus novos impasses? O que pode nossa força de criação para enfrentar este desafio? Que dispositivos artísticos estariam conseguindo fazê-lo? Quais deles estariam tratando o próprio território da arte, cada vez mais cobiçado (e, ao mesmo tempo, minado) pela cafetinagem que encontra aí uma fonte inesgotável para extorquir mais-valia de criação de modo a incrementar seu poder de sedução? Em suma, como reativar nos dias de hoje, em suas distintas situações, a potência política inerente à ação artística? Este poder de encarnar as mutações do sensível participando assim da reconfiguração dos contornos do mundo.
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