MuitoAlemDeGutenberg

Muito além de Gutenberg

Trechos de Muito além de Gutenberg:

  É precisamente nesse contexto que surgem o direito à intercomunicação, a
  inteligência coletiva, o fim da passividade do receptor, o conhecimento livre.
  Graças à tecnologia ¿ mais especialmente à busca de um mundo organizado
  segundo uma nova lógica social ¿, está se esfacelando um dos grandes instrumentos
  de dominação da era capitalista: o oligopólio das narrativas e discursos.
  Embora partidária do neoliberalismo, a revista Economist apontou, num estudo 
  publicado em meados de 2006, que está se encerrando a era da comunicação de massa.
  Iniciada com a invenção dos tipos móveis, por Gutemberg, ela foi marcada pela
  produção de um volume cada vez mais maciço de bens simbólicos, por um número
  cada vez mais reduzidos de emissores. Em seu lugar, está surgindo a era da
  comunicação pessoal e participativa. Sua marca será o poder que uma parcela
  cada vez maior da humanidade terá para se livrar da condição de mero consumidor,
  e tornar-se, também, produtor de bens simbólicos. As transformações serão tão
  profundas que Economist chega a prever o fim do jornal diário impresso, ainda na
  primeira metade do século atual.

  A mudança de paradigma, extremamente positiva, cria dois problemas complexos.
  O primeiro é a necessidade de recriar espaços públicos de debate, para evitar que
  a multiplicação dos produtores de conteúdo gere apenas um caos multifônico. O fato
  de cada ser humano ser um produtor de narrativas e discursos não deve significar que
  cada um se satisfaça consigo mesmo e dispense o diálogo. Nesse caso, estaríamos
  diante de uma nova forma de incomunicação e alienação. Para evitar o risco, é
  importante criar outros nós na grande rede, certos lugares onde os produtores de
  símbolos se encontram, se reconhecem e estabelecem trocas. Isso não se faz de forma
  piramidal, nem com base em relações mercantis, nem sob a batuta de um editor
  todo-poderoso -- mas a partir de recortes e pontos de vista compartilhados por uma 
  comunidade. No Brasil, um exemplo desbravador é o site de jornalismo cultural
  Overmundo. Centenas de leitores, muitos dos quais mantêm seus próprios blogs, ou produzem
  vídeo ou áudio -- ou seja, já são produtores de conteúdo cultural -- sentem-se atraídos
  para contribuir também para o Overmundo. Por que surgiu um nó, onde é possível
  estabelecer diálogos mais amplos. Lançado em outubro, o Caderno Brasil de Le Monde
  Diplomatique persegue um objetivo semelhante, no terreno do pensamento crítico e da
  busca de alternativas políticas. Num primeiro momento, ela reunirá colaboradores já
  reconhecidos por sua capacidade de análise, ou por atuar em iniciativas transformadoras
  e refletir sobre elas. Numa segunda etapa, como em Overmundo, a participação estará
  aberta a qualquer leitor que se tenha pontos de vista relevantes a expressar.

  Mas como viveremos nós, enquanto continuarmos imersos nas relações capitalistas?
  Em primeiro lugar, é preciso afastar a idéia de que uma nova sociedade pode ser construída
  num único ato, a partir do qual as relações sociais transformam-se por encanto. Durante
  muito tempo, teremos de ampliar o espaço das relações de solidariedade e compartilhamento,
  estando, contudo, obrigados a aceitar as relações de mercado, a vender nossa capacidade de
  produzir bens simbólicos. Uma grande arte haverá em equilibrar esses dois aspectos de nossa
  vida social.

  Isso exige, ao mesmo tempo, imaginar e testar desde agora novas relações. Se o trabalho
  necessário para produzir Overmundo é remunerado graças ao apoio de uma empresa pública,
  mediante patrocínio, devemos ter a ousadia de debater com a sociedade que se trata de uma
  relação muito mais avançada que vender o conteúdo do site aos que podem pagá-lo.

  [...]

  O problema desta pergunta é que ela pode conduzir a uma solução autoritária e
  centralista, na qual o Estado determina ¿ e promove, graças a recursos públicos -
  o que é, por exemplo, uma cobertura jornalística adequada, ou uma obra de arte
  de qualidade. Seria muito mais interessante se a janela de oportunidade aberta
  fosse aproveitada com uma postura alternativa: a defesa da diversidade e do
  direito à produção simbólica; e a necessidade de promovê-los ativamente.

  [...]

  Os projetos de incentivo devem mirar a formação de redes. Os produtores de conteúdo
  que atuam em cada comunidade devem ser estimulados a manter permanente diálogo com outros,
  que se dedicam a temas semelhantes, ou estão empenhados em dominar técnicas de interesse comum.
  Precisa haver programas que facilitem a realização  de encontros e oficinas, virtuais e presenciais,
  para troca de experiências, capacitação, construção de projetos coletivos. Iniciativas de
  comunicação compartilhada que já acumularam conhecimento editorial e técnico aprofundado
  devem ser convidadas a difundi-lo em seminários específicos ou turnês.

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