SociedadeDeControleCapitalismoRizomatico

Sociedade de controle e capitalismo rizomático

Trechos de Sociedade de controle e capitalismo rizomático:

  "Ora, se nestas originais configurações "imateriais" que articulam desejo e consumo,
   percebemos de que maneira modos de vida são capturados, turbinados e manufaturados a
   serviço do capital, e que, neste jogo, formas de sociabilidade e de subjetividade são
   constantemente produzidas/consumidas, logo toda e qualquer atividade de inovação que
   atravesse esse território, necessariamente requer, como matéria-prima fundamental e
   ilimitada para o acúmulo do capital, a mais-valia de vida em toda a sua pluralidade
   expressiva: seus movimentos diferenciantes, suas linhas de fuga mais discretas, seus
   momentos poéticos, seu humor, sua tragicidade, qualquer coisa, enfim, que possa gerar
   lucro.

   E o que as recentes máquinas abstratas de controle articulam e investem como seu modus
   operandi reside justamente sobre a captura do poder de invenção e de variação próprio
   à vida. Se, há algum tempo, a criação era concebida como um recurso que permitia furar
   o bloqueio do capital e instaurar outros regimes de subjetivação, temos que admitir
   que a criação ela própria tornou-se rentável, capitalizável e, portanto, tornou-se muito
   bem vinda nas malhas do capitalismo contemporâneo que busca sobremaneira capturar a
   diferença e a variabilidade para reinvesti-las na reprodução do Mesmo (o lucro e seus
   signos e mundos correlatos).

   Peter Pál Pelbart20, comentando o livro Le nouvel espris du capitalisme, de Luc
   Boltanski e Ève Chiapello, destaca algumas questões cruciais que nos permitem visualizar
   de que forma o capitalismo conseguiu superar muitos dos aspectos da crítica formulada
   contra ele nos anos 60-70 ao incorporar ativamente "ingredientes vindos do caldo de
   contestação ideológico, político, filosófico e existencial dos anos 60". Um novo espírito
   do capitalismo é forjado a partir das críticas e reivindicações "por mais autonomia,
   autenticidade, criatividade, liberdade, até mesmo a crítica à rigidez da hierarquia,
   da burocracia, da alienação nas relações e no trabalho, foi inteiramente incorporada
   pelo sistema (...)".21 Segundo Pelbart, essa recuperação demarca um ponto de apoio
   fundamental, a partir do qual uma nova ordem no sistema capitalista passa a ganhar
   força dos anos 80 em diante: "Significa que ao satisfazer em parte as reivindicações
   libertárias, autonomistas, hedonistas, existenciais, imaginativas, o capitalismo pôde
   ao mesmo tempo mobilizar nos seus trabalhadores esferas antes inatingíveis".22 Enquanto
   que nos anos 60-70 o trabalhador se adequava a um trabalho tipicamente repetitivo,
   automatizado, com tarefas mecânicas e emburrecedoras, na figuração da nova ordem produtiva
   e através de reivindicações por um trabalho mais interessante, criativo, o capitalismo
   passa a investir e a exigir dos trabalhadores: "(...) uma dimensão criativa, imaginativa,
   lúdica, um empenho integral, uma implicação mais pessoal, uma dedicação mais efetiva até.
   Ou seja, a intimidade do trabalhador, sua vitalidade, sua iniciativa, sua inventividade,
   sua capacidade de conexão foi sendo cobrada como elemento indispensável na nova configuração
   produtiva. Claro que isso implicava um desmanche das estruturas funcionamento muito
   mais aberto, flexível, num certo sentido mais autônomo e horizontalizado, em equipe,
   atendendo assim à toda a crítica do trabalho massificado e homogeneizador. A partir daí,
   cada qual deveria descobrir seu potencial específico no interior de uma estrutura mais
   maleável, com conexões mais abertas, mais ágeis, mais desenvoltas". 23

   A capacidade de estabelecer conexões será o novo termômetro de desempenho no interior
   dessa nova ordem, marcada por uma navegação livre num cenário de oportunidades inexploradas
   e estimulada pelas diversas possibilidades de conexão, pela abertura a outros mundos
   disponíveis e pelo sedutor apelo à invenção como fator diferencial na corrida para a
   realização profissional:

   "O ideal hoje é ser o mais enxuto possível, o mais leve possível, ter o máximo de
    mobilidade, o máximo de conexões úteis, o máximo de informações, o máximo de navegabilidade,
    a fim de poder antenar para os projetos mais pertinentes, com duração finita, para o qual
    se mobilizam as pessoas certas, e ao cabo do qual estão todos novamente disponíveis para
    outros convites, outras propostas, outras conexões. A própria figura do empreendedor já não
    coincide com aquele que acumula tudo, capital, propriedade, família - ao contrário, é aquele
    que pode deslocar-se mais, de cidade, de país, de universo, de meio, de língua, de área, de
    setor".24

   Estaríamos diante do que Boltanski e Chiapello (apud. Pelbart) denominam de capitalismo
   conexionista ou capitalismo rizomático. Suas propriedades são justamente favorecer a mobilidade,
   a flexibilidade e os hibridismos, possibilitar um trânsito sem horizontes entre informações,
   estilos e universos, relacionar-se e proliferar por redes.

   Essa nova versão do capitalismo revela outras faces muito particulares quando nos
   referimos a máquinas abstratas de controle e ao controle de forma geral. Se por máquinas
   abstratas entendermos determinados planos ou programas de subjetivação a céu aberto, ora
   localizáveis ora difusos, que ao mesmo tempo exigem um convênio recíproco, nossa participação
   ativa para modular nosso próprio controle, concluímos que, na nova versão rizomática do
   capitalismo, a questão do controle também segue a lógica de uma flutuação a-centrada,
   também acompanha o "livre" curso dos novos empreendedores. Pois uma vez que se passa a
   requerer mobilidade e criatividade, ao contrário de automatismo local e repetição serial,
   o problema do controle vem à tona: "... como controlar o incontrolável, a criatividade,
   a autonomia e a iniciativa alheias, senão fazendo com que as equipes auto-organizadas se
   controlem a si mesmas?".25

   [...]

   Como repensar práticas de liberdade diante de uma maquinaria que se alimenta também
   desse mesmo movimento de fuga e de abertura para o exercício de outras formas de
   sociabilidade?

   Talvez - perigosamente talvez - nosso trabalho ético se situe em duas frentes principais:
   em primeiro lugar, de fazer exercer nossa potência vital para uma estilização de nosso modo
   de vida e de nossos coletivos de ação rumo a consolidação de outros espaços não dominados
   pela mão dos valores do capital; em segundo lugar, de não perdermos de vista nossa
   perspectiva crítica, nossa capacidade de nos incomodar com tudo aquilo que se quer natural,
   universal, uniforme, igual..., que nunca deixemos de questionar, pois, como nos sugere
   Blanchot 32 , a questão é o desejo do pensamento. E o que nos resta a nosso pensamento
   senão desejar e a nosso desejo senão pensar? Desejar com o pensamento, pensar com o desejo.
   Talvez - perigosamente talvez."

Copyright (c) Coletivo Saravá: desde que não mencionado em contrário, este conteúdo é distribuído de acordo com a Licença de Manipulação de Informações do Coletivo Saravá.