SociedadeDeControleRogerioCosta

Sociedade de controle, de Rogério da Costa

Trechos de Sociedade de controle, de Rogério da Costa:

  "A assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição
   numa massa". Nas sociedades de controle, "o essencial não seria mais a assinatura nem
   um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha (...) A linguagem digital do controle é
   feita de cifras, que marcam o acesso ou a recusa a uma informação" (Deleuze, 1990)."

  [Repare o uso do termo "linguagem digital do controle" em contraposição à tradução
   de Pál Pelbart "linguagem numérica do controle".]

  "A passagem de um a outro implica que os indivíduos deixam de ser, justamente, indivisíveis,
   pois passam a sofrer uma espécie de divisão, que resulta do estado de sua senha, de seu
   código (ora aceito, ora recusado). Além disso, as massas, por sua vez, tornam-se amostras,
   dados, mercados, que precisam ser rastreados, cartografados e analisados para que padrões
   de comportamentos repetitivos possam ser percebidos."

  "Hoje, o importante parece ser essa atividade de modulação constante dos mais diversos
   fluxos sociais, seja de controle do fluxo financeiro internacional, seja de reativação
   constante do consumo (marketing) para regular os fluxos do desejo ou, não esqueçamos,
   da expansão ilimitada dos fluxos de comunicação. Por outro lado, da mesma forma que o
   terrorismo é uma conseqüência do terror imposto pelo Estado, a ação não localizada dos
   hackers, produzindo disfunções e rupturas nas redes, parece ser o efeito que corresponde
   adequadamente aos novos modos de atuação do poder. Nenhuma forma de poder parece ser tão
   sofisticada quanto aquela que regula os elementos imateriais de uma sociedade: informação,
   conhecimento, comunicação. O Estado, que era como um grande parasita nas sociedades
   disciplinares, extraindo mais-valia dos fluxos que os indivíduos faziam circular, hoje
   está se tornando uma verdadeira matriz onipresente, modulando-os continuamente segundo
   variáveis cada vez mais complexas. Na sociedade de controle, estaríamos passando das
   estratégias de interceptação de mensagens ao rastreamento de padrões de comportamento..."

  "Com a explosão da web alguma coisa está mudando. Devido à nova forma como as informações
   são estruturadas, em rede e reproduzidas em n pontos, acabamos gerando uma nova forma de
   vigilância, que se preocupa em saber de que modo essas informações estão sendo acessadas
   pelos indivíduos. Parece que o mais importante agora é a vigilância sobre a dinâmica da
   comunicação não apenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e as empresas, os
   serviços on-line, o sistema financeiro, enfim, todo o campo possível de circulação de
   mensagens. O que parece interessar, acima de tudo, é como cada um se movimenta no espaço
   informacional. Isso parece dizer tanto ou mais sobre as pessoas do que seus movimentos
   físicos ou o conteúdo de suas mensagens. A vigilância constante sobre as trilhas que os
   indivíduos deixam na web, por exemplo, tornou-se objeto de inúmeras discussões e
   especulações. Afinal, quem somos nós? Para onde vamos, o que fazemos, o que dizemos?
   Ou o que pensamos? O modo como nos deslocamos por entre informações revela muito do como
   pensamos, pois mostra como associamos elementos díspares ou semelhantes.

   O tracking generalizado nos chama a atenção. Há uma espécie de vigilância disseminada
   no social, já que todos podem, de certa forma, seguir os passos de todos. O controle
   exercido é generalizado, multilateral. As empresas controlam seus clientes; as ONGs
   controlam as empresas e os governos; os governos controlam os cidadãos; e os cidadãos
   controlam a si mesmos, já que precisam estar atentos ao que fazem."

  "É toda essa tecnologia que vem sendo agora incorporada pelos mais recentes projetos
   que alimentam a sociedade de controle. Um exemplo importante, e recente, é o projeto
   americano TIA - Total "Terrorism" Information Awareness, que propõe abertamente capturar
   a "assinatura-informação" das pessoas. Dessa forma, o governo poderia rastrear
   terroristas potenciais e criminosos envolvidos em tipos de crimes contra o
   Estado de difícil detecção.4

   A estratégia do projeto é rastrear indivíduos, coletando tanta informação quanto possível
   e usando softwares inteligentes e análise humana para detectar suas atividades potenciais.
   O projeto está investindo no desenvolvimento de uma tecnologia revolucionária para a
   armazenagem de uma quantidade enorme de todo tipo de fonte de informação, associando essas
   múltiplas fontes para criar um "grande banco de dados, virtual e centralizado". A diferença
   aqui é que essa grande memória seria alimentada a partir das transações contidas em diversos
   bancos de dados, tais como os registros financeiros, registros médicos, registros de comunicação,
   registros de viagens, etc. É com esse material que o rastreamento das informações será possível,
   e com ele a construção de padrões e associações entre os dados. O reconhecimento de padrões
   está diretamente ligado à mudança nos métodos de controle das ações individuais.

   Ora, aquilo que na web é a construção de um perfil dinâmico de usuários com fins comerciais, que
   serve para alimentar a sociedade de controle light do marketing, agora no TIA passa a ser a
   construção do perfil total, que será o resultado do cruzamento das ligações telefônicas de um
   indivíduo (sua origem, destino, data e duração), as despesas efetuadas em cartões de crédito
   (quanto, onde, quando) e, a partir destas, as operações comerciais mais diversas. O que o projeto
   almeja, com esse esforço, é a produção de uma visão dos padrões de comportamento de amostras da
   população. O objetivo básico do projeto é auxiliar analistas a compreender e mesmo prever uma
   ação futura, no caso uma ação terrorista. Mas o mais importante é que, diferentemente da estratégia
   de interceptação de mensagens que já conhecemos no Echelon, onde o que se procura de forma direta
   são conteúdos específicos associados a pessoas específicas, no TIA o processo seria em princípio
   indireto, pois é pelo negativo dos padrões que se intercepta um comportamento suspeito. E com a
   implantação de um tal projeto, chegamos definitivamente na modulação contínua da sociedade de
   controle de que nos fala Deleuze, pois deixamos de olhar para as informações como associadas
   a indivíduos, e sim como relacionadas entre si dentro de um quadro maior. É justamente essa
   amostra ou conjunto de dados que deve ser modulado.

  "Não esqueçamos, no entanto, que essa ubiqüidade dos seres só é possível por causa do dinheiro
   eletrônico. Ele representa mais uma mutação do capitalismo, pois se o dinheiro papel é caro
   e sem controle em sua circulação, o dinheiro eletrônico, além de reduzir os custos, acaba
   gerando mais controle sobre os indivíduos e a circulação do capital. O papel moeda é anônimo,
   o dinheiro eletrônico não. É o caso do imposto CPMF criado no Brasil, através do qual é
   possível controlar toda a circulação financeira digital do país."

  "Bem, se somarmos a isso todos os sistemas de vigilância por câmeras, disponíveis para
   os departamentos de trânsito, estaremos finalmente desembarcando no mundo de Minority
   Report, onde a grande questão não é simplesmente antecipar os crimes do futuro, mas
   estabelecer essa modulação contínua, no presente, de todos os comportamentos, com os
   indivíduos não sendo mais que pontos localizáveis numa série de redes que se entrecruzam.
   Assim, só resta aos usuários controlar todo o tempo as informações pessoalmente
   identificáveis que eles estão fornecendo ao sistema continuamente. Como nos alerta
   Deleuze (1990), "diante das próximas formas de controle incessante em meio aberto,
   é possível que os mais rígidos sistemas de clausura nos pareçam pertencer a um passado
   delicioso e agrádavel"."

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