TrabalhoEExclusao

Trabalho e Exclusão: Entre universalização da guerra e universalização dos direitos

Trechos de Trabalho e Exclusão: Entre universalização da guerra e universalização dos direitos:

  Nossa hipótese é que, por trás da velha retórica liberal (a sede de
  ganho individual como motor da produção de riqueza e a racionalidade
  pública como fruto dos egoísmos privados: a mão invisível de Adam
  Smith), o "neo" liberalismo tem objetivos e urgências de tipo
  novo, profundamente fincadas na materialidade do novo regime de
  acumulação. Em particular, o neoliberalismo constituiu-se numa resposta
  pertinente (fortemente menosprezada pela crítica) à crise do Estado. Uma
  resposta cuja potência estava (e ainda está) no entendimento das origens
  desta crise. Neste sentido, podemos dizer que \u201cpor trás do mercado
  do liberalismo (precisamos enxergar) a marcha da liberdade\u201d.[11]

Rhatto discorda. Parece que a desregulamentação não foi defendida enquanto não havia um momento propício para ela: da mesma forma como o sistema de patentes foi criado para garantir o estabelecimento da indústria e do monopólio e hoje começa a dar sinais de flexibilização por agora se mostrar insustentável ao capital, a falência do modelo keynesiano só foi defendida a partir do momento em que as corporações tiveram pernas suficientes para não depender mais do financiamento e da proteção pública. Fora isso, o modelo neoliberal aliado ao capitalismo logístico-informacional é uma tentativa clara de neutralizar as lutas dos movimentos sociais.

  A dinâmica paradoxal do capitalismo cognitivo[40] é emblemática desta
  nova janela de luta e de seus desdobramentos. Com efeito, na era do
  conhecimento, a valorização do capital passa por um jogo de constituição
  do tempo que os economistas definem como o fato da oposição entre
  aceleração da difusão e desaceleração da socialização dos produtos do
  trabalho cognitivo. Por um lado, o capital pretende estabelecer o
  domínio do futuro, de um tempo constituído pela aceleração da difusão
  (que aumenta o valor). Pelo outro, o capital precisa enfrentar a
  potência do devir, desacelerar e fechar o tempo constituinte da
  socialização do trabalho vivo (que diminui o valor). Mais uma vez, o
  tempo constituído e fechado do trabalho morto se opõe ao tempo
  constituinte e aberto do trabalho vivo. Mas, desta vez, a oposição é
  substancialmente diversa, pois ela é improdutiva e implica na
  metamorfose da própria substância da riqueza.[41] Em sua forma
  tradicional, a riqueza e o valor coincidiam, ao passo que o tempo de
  trabalho e o de vida se separavam a até se opunham. O imaterial era um
  meio de produzir submetido ao material e constituía um mundo de produção
  composto de bens materiais e serviços reproduzíveis e substituíveis. A
  valorização alimentava-se pela vigência dos princípios de raridade e de
  utilidade marginal. Em sua nova substância, o aumento da riqueza implica
  na diminuição do valor. O material (o hardware bem como o software) é um
  meio de realização do imaterial (da criatividade livre do trabalho
  vivo)[42]. E isso na medida em que a aquisição de bens e serviços é um
  meio de se fruir da vida, de se criar um excedente de ser. O tempo de
  trabalho é recomposto em um tempo de vida, ou seja, na constituição de
  um ¿ser¿ singular e comum capaz de ¿criar configurações inusitadas¿. A
  riqueza coincide, pois, com a própria vida e sua potência. Neste sentido
  é que podemos realmente "pensar pelo avesso"[43]: o capital é inútil à
  mobilização produtiva do trabalho vivo (da vida) e toda hierarquização
  deste às suas configurações mortas é, esta sim, fictícia e parasitária.

  A equação capitalista entre uma difusão cada vez mais rápida em face de
  uma socialização que deveria ser cada vez mais lenta se faz a custos
  incalculáveis. Os produtos do trabalho cognitivo (ou imaterial) não
  precisam da relação de capital para ser produzidos e não pertencem mais
  ao capital, pois eles coincidem com as próprias relações sociais de
  cooperação. A dimensão privada da riqueza como valor se sustenta na base
  da afirmação abstrata e arbitrária do direito de propriedade. Esta
  ¿sustentação¿ privada da riqueza para manter a extração de valor acaba
  reduzindo dramaticamente o potencial produtivo de riqueza. Quando a lei
  do valor é reafirmada, ela se torna antiprodutiva.[44] Para se tornar
  valor, a riqueza deve ser difusa (pública), mas não pode ser socializada
  (comum). O público e o comum são mantidos separados. Esta é a força (o
  público, a difusão: os celulares para todo o mundo; a internet grátis; o
  baixíssimo custo dos hardwares e ainda mais baixo dos softwares) e a
  fraqueza (a discriminação na base do poder de compra do uso real dos
  serviços; os obstáculos à proliferação criativa dos usos das informações
  e de suas ferramentas impostos pela lógica proprietária do copyright) da
  proposta de universalização das condições de ter direito aos direitos
  via mercado. Mas isso não deve permitir que se esqueça o quanto o
  capitalismo cognitivo procura (e precisa) o/do público e como isso pode
  ser um vetor de inovação paradoxal naquelas situações, como a
  brasileira, em que os dispositivos de distribuição da riqueza e de
  acesso aos serviços eram e são, na base da mediação de um estado
  autoritário, burocrático, racista e tecnocrático, ainda mais atrasados
  (menos públicos e em nada comuns) do que os mecanismos que o mercado
  oferece.

  A equação do capitalismo cognitivo é paradoxal e se reproduz a custos
  incalculáveis, pois a produção da riqueza não pode mais se separar das
  condições de sua fruição: produzir o mundo é a mesma coisa que fruí-lo.
  A substância da riqueza depende da relação íntima e inquebrável de suas
  dimensões públicas e comuns: é o que emerge nos primeiros passos de um
  novo direito público, em particular na lógica pública da proteção do
  trabalho comum (da socialização). A lógica pública (do copyleft[45]) se
  opõe à lógica proprietária (do copyright) à medida que ela se qualifica
  pela proteção do comum, ou seja, dos produtos da atividade humana (por
  exemplo, as externalidades positivas e os usos inovadores). Os novos
  territórios produtivos são justamente os desenhados pela convergência do
  público e do comum.

  [...]

  Ou seja, devemos lembrar que a reorganização neoliberal do Estado (que é
  muito mais do que sua mera redução)[47] está ligada a um duplo fenômeno:
  por um lado, o esgotamento do processo de universalização das bases
  materiais da cidadania fundamentado na universalização da relação
  salarial; por outro, a afirmação paradoxal de um regime de acumulação no
  qual os serviços se tornam produtivos e, pois, a cidadania se torna a
  condição necessária à inserção produtiva. Contrariamente ao que se diz e
  ao que se pensa, o projeto neoliberal é muito mais ambicioso de que a
  mera procura da ¿privatização¿ dos lucros de algumas estatais (por
  importantes que eles sejam). A ambição dos neoliberais é de oferecer um
  projeto, de afirmar a desregulamentação e a privatização como mecanismos
  mais universalizadores do que aqueles que o Estado conseguia produzir. É
  nesta medida que o mercado é posto como o melhor mecanismo substitutivo
  da relação salarial.

  A competição e a flexibilização pretendem se afirmar como os princípios
  mais eficazes de difusão e democratização dos bens que tornam as redes
  sociais produtivas. É, aliás, justamente nos países (como o Brasil) nos
  quais a relação salarial não tem se universalizado e a cidadania (para
  além os privilégios restritos de umas pequenas camadas do funcionalismo
  público[48]) é completamente subordinada ao arbítrio do Estado que a
  proposta neoliberal se traduz por contundentes políticas de
  universalização via mercado.[49]

  [...]

  É neste nível que devemos situar a crítica: entender os novos (e
  potenciais) movimentos antagonistas apreendendo as contradições novas
  que estes deslocamentos determinam. A nosso ver, isso significa
  abandonar definitivamente a velha perspectiva de uma reconstrução do
  público a partir do reforço do papel do Estado. Trata-se, ao contrário,
  de aproveitar as brechas ligadas a seu enfraquecimento, aprofundar o
  processo de libertação que os neoliberais tentam usar e canalizar para
  constituir o público. Os elementos potentes da nova contradição estão
  inscritos, de um lado, numa privatização que promove a apropriação
  restrita de bens cuja produtividade é diretamente proporcional ao nível
  de sua publicidade; e, de outro, numa desregulamentação que acaba
  substituindo aos monopólios estatais os dos grandes grupos
  multinacionais e que, pois, se mostra incapaz de sustentar um verdadeiro
  processo de democratização, ou seja, de construção do comum.

  Desta maneira, a privatização reduz o "público" ao que pode ser comprado
  (e o cidadão, ao consumidor dotado de um poder de compra), ao passo que
  a desregulamentação limita-se à difusão (como no caso da lógica do
  copyright) e, opondo-se à socialização, fragmenta o "comum". O projeto
  neoliberal não funciona porque ele é apenas superficialmente
  pós-estatal. Na realidade, o mercado reproduz o Estado pela separação do
  público e do comum e deve ser criticado porque se mostra claramente
  incapaz de produzir um novo regime de universalização dos direitos.
  Nele, a cidadania formal fica definitivamente separada da cidadania
  material (até porque ela não tem nem aqueles mecanismos integradores que
  a própria expansão industrial lhe garantiam) e se reproduz na forma de
  um poder transcendente sem mediações.

  Só o movimento do trabalho vivo é capaz de afirmar a relação que liga,
  de maneira imanente, o público ao comum, a liberdade à igualdade. É
  nesta perspectiva que precisamos romper com a falsa alternativa ¿Estado
  versus mercado¿ e com sua imagem reflexa, a que opõe as políticas
  neoliberais às resistências corporativas.

Copyright (c) Coletivo Saravá: desde que não mencionado em contrário, este conteúdo é distribuído de acordo com a Licença de Manipulação de Informações do Coletivo Saravá.