PrimitivismoTecnopolitica

Tecnopolítica: um contraponto ao primitivismo

Sentimos que, de uns tempos para cá, há uma tendência crescente dos grupos e indivíduos autônomos pelas idéias primitivistas, principalmente por aquelas que negam a cultura e a tecnologia como forma de emancipação do indivíduo. Acreditamos que a cultura e a tecnologia podem ser utilizadas também como forma de luta social e nos preocupa muito a possível fuga das lutas que a adoção de práticas essencialmente primitivistas pode trazer dentro dos grupos autônomos. Por isso, pretendemos compartilhar o ponto de vista de uma tecnopolítica que acreditamos oferecer um contraponto a tais idéias.

Queremos deixar bem claro que nossa intenção não é deslegitimar as opções políticas e as atuações de grupos e pessoas. É exatamente por estimarmos muitos grupos que estão aderindo a uma linha mais primitivista que lançamos este apelo para o abandono de tais idéias em detrimento de uma visão transdisciplinar (1) da tecnologia, da cultura e sobretudo da atuação política. Este texto está longe de constituir um pensamento pronto e fechado em si. Ao contrário, ele é fruto de discussões ainda em curso.

A busca pelo primitivismo na morte das utopias

Nos parece que o pensamento radical de esquerda tem passado sucessivamente por fases de morte de utopias. Cada geração presencia derrotas em suas lutas que são corroboradas por um pensamento crítico empenhado em explicar o motivo das lutas e da própria organização dos movimentos sociais não ter dado certo. Assim, cada geração da esquerda parece deixar como legado não apenas suas experiências, vitórias e derrotas, mas sobretudo a morte da utopia em que viveu.

Se isso não estava claro durante os anos 70, quando surge o capitalismo informacional como resposta às lutas sociais que vinham ocorrendo desde os anos 60, ficou bastante claro com o ápice do movimento anti-globalização. Durante os anos 80 e 90, as décadas de triunfo do neoliberalismo batizadas de época da "morte das utopias" (2), não havia mais um terreno teórico sólido ou apoio intelectual onde se agarrar: onde quer que a análise da mudança social voltava seu olhar, ela apenas chegava a conclusões negativas. Tanto as correntes clássicas do pensamento social quanto as vertentes pós-modernas mostravam que não haveria saída, seja pelo fracasso do pensamento clássico (uma vez que o capitalismo evoluiu e aprendeu com as lutas anteriores), seja pelo pós-modernismo e suas perigosas conclusões acerca da inutilidade das lutas sociais.

O movimento anti-globalização surgiu como uma nova utopia que buscou a mudança não através de vias ditas "clássicas" ou "pós-modernas", já que estas estavam desgastadas. Ele buscou, ao contrário, construir a mudança no ativismo cotidiano e na ação direta, tendo como pensamento inconsciente algo como "não adianta ficarmos presos à ideologias e intelectualismos, pois estes até agora só nos mostraram que a mudança é impossível, mostraremos que a mudança é possível na prática". A nova esquerda passou então a buscar a mudança efetiva através da própria prática da mudança. Foi um grande renascimento. Pessoas como os/as zapatistas começaram a mostrar que existiam diversos caminhos possíveis e reais para a mudança (3).

O jogo mais uma vez virou de lado: se antes o movimento anti-globalização mais representava uma ameaça do que estava ameaçado, hoje são os grupos autônomos que percebem o quanto sua atuação já não é tão nociva quanto foi durante os dias de ação global. Em certo sentido, os grupos autônomos são, hoje, órfãos do movimento anti-globalização e de uma rede de atuação conjunta. Toda aquela energia que produzia a mudança no dia-a-dia e também nas ações diretas parece que se esgotou. A certeza de que poderíamos deixar a teoria de lado e mudar o mundo praticando a mudança passou a ser questionada. Essa utopia, assim como as suas antecessoras, aparentemente está morrendo.

A morte das utopias, então, é o processo pelo qual cada geração estabelece sua ideologia como negação dos pressupostos das gerações anteriores. Assim, se antes a propriedade privada era o grande demônio do capitalismo (vale lembrar que se acreditou que a humanidade em si era boa, mas se desequilibrou com o advento da propriedade privada; se esta fosse destruída, a humanidade voltaria a seu estado de equilíbrio), tal papel de algoz foi posteriormente oferecido também à família, ao patriarcado, à indústria, à técnica, à agricultura e finalmente à cultura.

Não estamos dizendo que na verdade essas instituições não são ruins como tantos pregam, o que queremos dizer sobre a morte das utopias é que, a cada vez que uma utopia morre, uma nova utopia surge como negação das utopias anteriores ou de instituições que até então não foram negadas. Para negar tudo o que foi pensado até então, é preciso ir cada vez mais fundo, reproduzindo sempre o seguinte moto: "ora, se determinada ideologia falhou, é porque ela não negou o suficiente".

Sentimos, no presente momento, que, em parte, estamos diante de uma morte de utopias do ativismo brasileiro. O movimento anti-globalização, que uniu tanta gente e fez com que tantas pessoas diferentes, com origens, experiências e visões de mundo distintas, se encontrassem e se engendrassem (4) num projeto político mais ou menos comum, parece a cada dia mais esfacelado. Se há poucos anos havia uma extensa rede por todo o país capaz de discutir uma agenda comum e planejar ações conjuntas, hoje não há apenas uma dispersão -- que nem sempre é necessariamente ruim, pois a dispersão pode se constituir como uma preparação para um novo rearranjo --, mas, principalmente, um sentimento de que a experiência anti-globalização foi um grande fracasso e que não valeu muito a pena, tendo em vista que não estamos numa condição muito diferente do que estávamos há alguns anos, com a diferença de que hoje temos menos disposição.

Muita gente também se jogou de cabeça nos grupos e movimentos, se doando completamente para alguma luta/causa, esquecendo que também é necessário viver durante o processo. Pensar que "o importante agora é mudar o mundo, e só apenas depois de o fizermos é que poderemos nos divertir" contribuiu para que muita gente surtasse, apesar da crítica a esse tipo de abordagem já existir há muito tempo.

Nesse contexto, percebemos que muitos grupos e indivíduos tem encarado essa crise com uma busca por outras ideologias e outras práticas que preencham o vazio deixado pelo antigo movimento. Em muitos casos, essa busca se inicia com a negação da atuação anterior, sendo que a cada etapa a negação se torna mais radical (nega-se a propriedade, nega-se a técnica, nega-se a cultura) enquanto que as possibilidades de atuação tornam-se assim cada vez mais restritas (não podemos mais nos unir em sindicatos, não podemos mais utilizar a cultura ou a técnica em nosso favor).

Interjeição. Mais uma vez, para que fique claro: não estamos dizendo que não somos contra a propriedade privada ou contra uma série de relações sociais injustas -- afinal e trocando em miúdos, a propriedade privada nada mais é do que uma relação social onde um dado número de pessoas crê que determinada pessoa possui direitos exclusivos sobre alguns objetos, terra, seres vivos, etc -- estamos dizendo que o modo como tem sido negadas acabam por negar a própria possibilidade de atuação e de mudança, pois vai nos jogando cada vez mais para fora do palco político.

É com esse pano de fundo que vemos no Brasil, especialmente dentro de alguns grupos que estabelecemos alguma relação, as idéias primitivistas ganhando cada dia mais terreno ao proporem um desligamento total do sistema através de práticas de destruição da propriedade, da cultura, da tecnologia, da agricultura e do que mais for considerado como um erro ou fuga de uma natureza perdida.

Sabemos que prática e idéias primitivistas já tem sido praticadas no Brasil há longos anos e, apesar de não compactuarmos e pretendermos um debate político para a mudança de tal atitude, respeitamos quem faz tal escolha. O que mais nos preocupa, no entanto, é o fato do primitivismo estar ganhando terreno de forma que possa esvaziar diversas lutas políticas e sociais muito pertinentes.

Vemos que as pessoas que tem adotado tal atuação tem dois motivos para isso:

  1. "Por mais que tentemos mudar o sistema, jamais teremos sucesso e as chances de nos ferirmos é muito grande. A única solução é sair do sistema, viver à margem ou além da margem".
  2. "O problema do sistema está em suas bases fundamentais. Assim, a solução final será obtida através da eliminação dos problemas fundamentais do sistema" (sejam estes a propriedade, a tecnologia, a civilização, etc).

Há então um cansaço e uma descrença que levam à busca pelo desligamento e assim o debate sobre primitivismo é importante sobretudo para conceituarmos nossas atuações, assumindo que temos uma energia disponível pequena (5) e queremos canalizá-la de maneira a melhor atingir nossos objetivos ou ao menos fazer com que elas tracem caminhos mais próximos do nosso destino utópico. Quando uma pessoa se depara com o enorme desafio da luta e da mudança política, ela tanto pode encarar de frente sua tarefa ou então escolher se postar à margem.

Assim, nossa intenção é fazer uma crítica respeitosa e construtiva (6) destinada a quem está entrando de cabeça na onda primitivista, freeganista ou até manguista em detrimento de uma atuação mais inserida na sociedade. Não estamos propondo a volta da utopia do movimento anti-globalização, queremos sim propor uma forma de encarar nossas utopias e nossas ações -- que são os caminhos traçados pelo que o desejo de se aproximar da utopia nos faz percorrer -- com uma realidade política que sempre será de luta e não de fuga pela negação.

Vemos o debate que surge sobre o primitivismo como algo também positivo por revelar a necessidade de um debate mais profundo acerca da atuação. Em resumo, vemos a adoção do primitivismo como uma crise na atuação e que por ser uma virada abrupta também gera a potencialidade de um debate rico e que ajude os grupos e indivíduos a se recontextualizarem. Este também pode ser um momento interessante também para repensarmos o descompasso da cultura contemporânea com o mundo -- a cultura é realmente um problema, pois está completamente aparelhada de maneira a tornar a realidade uma merda -- e alternativas culturais possíveis e estratégicas para as mudanças que queremos.

Dividiremos nosso argumento em duas etapas, referentes aos dois pensamentos citados anteriormente e que tem feito com que certas pessoas adotem o primitivismo:

  1. Mostrar que é politicamente perigoso adotar a linha de ação primitivista por ela levar a um isolamento das lutas.
  2. Mostrar que o próprio pensamento primitivista possui problemas de natureza conceitual e prática.

Por fim, queremos mostrar principalmente que essa crise de atuação em certo sentido é uma crise falsa: a crise está tanto em nossa cabeça (que achamos que passamos por um momento grave) quanto em nossa organização/desorganização, que insiste em formas já incompatíveis e restritas. No entanto, ainda temos muita energia e condições disponíveis para atuarmos, talvez até mais do que nunca. O momento é propício e necessário, portanto, para repensarmos e recontextualizarmos nossas atuações e visões de mundo.

O primitivismo

Falar de um único pensamento primitivista -- ou anarco-primitivista, como algumas pessoas preferem -- é negar a existência de diversas correntes e variantes dessa doutrina, sendo que nem todas concordam entre si. Contudo, elas partilham de um conjunto mais ou menos coeso de críticas e objetivos que nos permitem delinear suas bases. Não conhecemos todos os textos e visões dos/as primitivistas mas conhecemos as bases de tais pensamentos e é a elas que dirigimos nossas críticas.

Em linhas gerais, o primitivismo identifica que a complexificação das atividades humanas tende a uma diferenciação (isto é, aumento da divisão social do trabalho) que por sua vez gera assimetrias sociais (hierarquização e exploração) e ecológicas (domesticação, desequilíbrio e poluição ambiental). De modo que os pensamentos primitivistas negam (em diversos graus, variando de uma corrente de pensamento para outra) a tecnologia, a cultura e às vezes o próprio pensamento simbólico, uma vez que são considerados como a origem da escravidão do ser humano pelo ser humano e da natureza pelo ser humano.

A cultura simbólica seria não apenas o que gera a divisão do trabalho mas aquilo que distancia o ser humano da natureza, por mediar a relação entre a pessoa e a realidade através de símbolos em detrimento de uma relação sensória direta, enquanto que a tecnologia é vista também como mediadora (mas desta vez das ações humanas) e como o aparato de domesticação e controle da vida.

Sendo a origem de desequilíbrios o ponto fundamental do pensamento primitivista, os seguidores da doutrina afirmam que no período anterior da origem a humanidade desfrutava de uma existência livre, harmoniosa e totalmente igualitária.

Assim, a luta contra a dominação e o controle se resume basicamente na destruição das raízes desses problema: a civilização, a tecnologia, e a cultura. Como estratégias, o primitivismo pode adotar tanto a destruição direta da civilização (como por exemplo a destruição da propriedade privada) ou, o que é mais comum, a busca pelo desligamento do sistema social atual (criando por exemplo comunidades com o intuito de obter auto-sustentabilidade).

Já afirmamos que existem muitos primitivismos. Existem alguns mais radicais, direcionados à cultura ou à técnica, enquanto que outros, mais moderados, deslocam o problema da origem (e que, juntamente com a questão do retorno, é a característica básica dos primitivismos) ao atribuí-lo para a civilização (considerada como um conjunto cultural surgido há poucos milhares de anos e que se multiplicou com violência e sendo a causa original dos males da sociedade e do ambiente).

Criticamos tanto a questão das origens como a proposta de retorno. Apostar nas origens é ignorar produções, modificações e reproduções. Em outras palavras, é ignorar a genealogia dos fenômenos. Como escreve Foucault,

  A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda
  do filósofo, ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe,
  ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
  ideais e das indefinições teleológicas. Ela se opõe à pesquisa
  da "origem". [...] Procurar uma tal origem é tentar reencontrar
  "o que era imediatamente", o "aquilo mesmo" de uma imagem exatamente
  adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam
  ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer
  tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.
  [...] O que se encontra no começo histórico das coisas não é a
  identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as
  coisas, é o disparate.1

Quanto à proposta de retorno, ela não é apenas impraticável como ignora a dinâmica mutante dos sistemas complexos. Não há retorno para o tempo pré-histórico, isso simplesmente não vai acontecer. Mesmo no caso de um cataclisma, quando por acaso aquilo que os/as primitivistas chamam de civilização for destruída, as sociedades humanas sobreviventes não se organizariam da forma como existiram há milhares de anos, mas sim de um modo diferente, influenciado pelo que aconteceu anteriormente mas também contendo elementos novos.

Primitivismo e capitalismo

Consideremos, primeiramente, os resultados do primitivismo como atuação política dentro do capitalismo atual para, em seguida na próxima seção, estabelecermos nossa crítica ao primitivismo como doutrina.

O capitalismo é um sistema dinâmico (7) que possui a capacidade de se adaptar e expandir suas fronteiras. Não apenas discordamos dos pressupostos da doutrina primitivista como achamos que um embate de ativistas primitivistas com o capitalismo seria fatal para os primeiros/as:

  1. Mesmo que não seja um movimento, ou um movimento com moldes de massa (8), o primitivismo assume que a mudança será tão mais profunda quanto maior for o número de pessoas assumindo um determinado tipo de comportamento. Nessas condições hipotéticas, não estranharíamos se a massa de primitivistas e freeganistas, caso atingisse um ponto crítico, fosse diretamente atacada e destruída (da forma como ocorreu em Canudos ou através do envio dos/as primitivistas a campos de reeducação (conforme ocorria com os mendigos dos grandes centros urbanos europeus na época da industrialização). Ou seja, nesse caso não seria possível que uma grande massa de pessoas simplesmente se desligasse do sistema e conseqüentemente ocasionasse seu esfacelamento.
  2. As possibilidades do item anterior condizem mais com regimes totalitários centralizados que dependem muito da força de trabalho proletária do que com o moderno capitalismo informacional, no qual grande parte da população mundial já foi etiquetada como inútil e descartável. O mais provável é que, nesse contexto, os primitivistas atuem na diminuição do impacto ambiental (o que é maravilhoso para o capital) e também contribuam para a atual tendência de feudalização do mundo, com suas zonas verdes e vermelhas. Os primitivistas podem então operar num nicho semelhante aos catadores/as de papel e sucata (que hoje representam uma versão totalmente precarizada (9) das empresas de coleta de lixo).

É claro que os dois itens anteriores se referem apenas ao caso em que o número de primitivistas e freeganistas seja significativo na sociedade. Na prática, isso dificilmente deve acontecer, uma vez que o número de possíveis adeptos dessas práticas será sempre pequeno. Não apenas pequeno, mas pequeno e isolado, portanto neutro, sendo esse o fato que hoje traz mais perigo na adoção de tais doutrinas do que as duas hipóteses levantadas anteriormente (10).

Elas são perigosas exatamente porque podem neutralizar da atuação política pessoas com um grande potencial inconformista e transformador. Não estamos falando de uma neutralização da "vanguarda", mas da neutralização de uma parcela significativa de desviantes (11), da mesma forma como o "movimento" hippie deixou de ser uma forma de contestação e passou a ser apenas um estilo de vida; ou mesmo o rock'n'roll e suas variantes, que canalizam potenciais rebeldes para práticas inofensivas.

Por isso, o perigo dessas doutrinas, hoje, não reside no que ela pode resultar de catastrófico, mas pela potencial neutralização que ela pode ocasionar. Note que não vale a recíproca: mesmo se muita gente fosse primitivista, haveria perigo mesmo assim para seus adeptos (não apenas os acima mencionados, mas os próprios perigos conceituais, sobre os quais falaremos na próxima seção).

O primitivismo pode, então, representar armadilhas ao movimento anticapitalista. A redução do impacto ambiental constitui uma tarefa e uma questão ética para qualquer pessoa. Reduzir toda a atuação política de uma pessoa a isso, porém, é recair na pura adoção de um estilo de vida em detrimento da atuação política e social. A política é a guerra praticada através de outros meios (12). Se desligar totalmente da sociedade, mesmo que fosse possível, seria se neutralizar politicamente (13). No primitivismo, o desligamento (e a conseqüente neutralização) parecem ser as prioridades, o que nos parece ser uma opção de libertação pessoal que, por se preocupar mais com a autonomia individual do que com a união social, acaba por adotar o paradigma de que uma pessoa é livre se ela tem poder para realizar suas escolhas. Ou seja, é uma abordagem ligada à adoção de um estilo de vida ao invés de ser uma forma de libertação de todo o corpo social (além do que, ao se desprezar o corpo social, despreza-se também a própria cultura, como veremos a seguir).

Assim, tais doutrinas são impotentes em escancarar brechas, em fazer precipitar conflitos realmente perigosos, de colocar o mundo do capitalismo em risco em seu sentido, ou seja, de fazer o capitalismo não fazer sentido algum. Elas não apenas não geram perigos efetivos ao sistema capitalista como geram perigo para os grupos praticantes.

A urgência e a emergência da transdisciplinaridade

As afirmações de que a ciência e a tecnologia são neutras mas é o seu uso é está dotado de escolhas políticas e sociais são duas grandes falácias. A tecnologia, a ciência e principalmente a cultura não são neutras. Muito pelo contrário, a própria forma como elas são manipuladas e manipulam a sociedade revelam escolhas feitas por aqueles/as que puderam escolher.

Aparentemente essa relação de influência mútua pode não fazer o menor sentido, mas justamente por ela existir e ser fundamental para o estabelecimento de uma atuação tecnopolítica que acreditamos ser pertinente refletirmos sobre alguns conceitos possíveis para o que chamamos de cultura, de técnica e de política, a começar pela afirmação de que esses três conceitos são facetas dos processos sociais (14).

Consideremos a cultura (15) como registros e descrições de atividades sociais e não o conjunto de atividades sociais em si:

  Quando alguém descreve o que determinadas pessoas fazem, tal descrição seria o objeto cultural,
  uma captura falha do que aquelas pessoas fazem. Elas fazem o que fazem e descrições sempre são
  incompletas. [...] A cultura é então extremamente contaminante e possibilita a existência do diálogo 
  cultural: descrição e re-escrita. A cultura de um povo seria a descrição que o mesmo dá de suas
  atividades, seja dança, seja fala, seja qualquer atividade humana que possa ser sentida e com ela
  dialogada. Os próprios diálogos utilizam linguagens, que são descrições quando tocam os ouvidos do
  outro/a.

Diremos ainda mais:

  A cultura de um grupo, de um movimento social ou de um povo significa resistência quando os
  registros de suas atividades indicam resistências à dominação. A cultura é então uma forma
  de reprodução de comportamentos e é a natureza dos comportamentos reproduzidos que dirá se
  a cultura é ou não nociva para as pessoas e para o ambiente.

Da mesma forma, a técnica é o conjunto de procedimentos (ou descrição deles) com o intuito de modificar o socioambiente de modo a atingir determinadas finalidades. Diremos então que é a política que dialoga com a tecnocultura e efetua as escolhas que resultarão num impacto socioambiental. A política é o campo de batalha onde as escolhas sociais são efetuadas, sendo que boa parte de tais escolhas são tecnoculturais. O que comeremos? Como a comida será obtida? Ela será preparada? Como? Mesmo essas simples perguntas estão dotadas de uma forte carga tecnológica e cultural: a forma como a comida será obtida e processada é uma prática tecnológica e sua reprodução (através de receitas, por exemplo) é uma atividade cultural. A escolha, a decisão sobre como fazer, será extremamente política. Podemos assim determinar, através da autogestão, nossas tecnologias alternativas, inclusive as tecnologias de resistência (16).

O neoliberalismo perpetua sua ditadura do "livre" mercado afirmando que toda decisão é meramente técnica e portanto as pessoas não precisam se preocupar com ela, uma vez que os problemas devem ser encarados por técnicos especialistas. A falha básica de tal argumento é esquecer que a técnica apenas surge após escolhas políticas, que são em parte também determinadas pela técnica anteriormente existente.

O primitivismo, por outro lado, afirma que a técnica em si é ruim, pois ela leva necessariamente à desgraça da humanidade: afirma que a técnica em sua essência já contraria uma natureza que se encontrava anteriormente em equilíbrio. A cultura, por ser a disseminação da técnica, seria então um mau até maior. A nosso ver, o primitivismo também comete uma grande falha ao seguir essa linha de raciocínio, não apenas ao sugerir a dualidade entre natureza e cultura -- que a nosso ver não faz sentido nenhum, já que se tratam de conceitos completamente diferentes, a cultura sendo algo que existe dentro da natureza e da mesma forma a natureza sendo um conceito altamente dependente da bagagem cultural de uma pessoa ou de um povo --, mas também por desprezar a escolha política que depende e é dependente da tecnologia.

Para nós, não há caminho fácil: é no entrelaçamento (17) da tecnologia, da cultura e da política que surge a complexidade na qual acreditamos ser necessário estabelecer nossa atuação.

Toda a tecnologia acaba por influenciar a visão de mundo (18) que por sua vez influi na própria modificação da tecnologia. Assim, se o paradigma de entendimento da sociedade de soberania foi a alavanca e o da industrial foi o da termodinâmica, hoje as visões de mundo se baseiam nos computadores. A força de tais paradigmas são tão fortes que hoje alguns físicos/as chegam a propor teorias de explicação do universo usando conceitos da ciência da computação (o universo como um processador informacional, por exemplo).

A tecnopolítica é a proposta de entendimento e ação que leva em consideração as escolhas políticas no uso da tecnologia, sendo o uso da tecnologia entendido não apenas como a aplicação prática de suas possibilidades mas também no seu uso como forma de entendimento do mundo: nossa forma de descrever o mundo influencia e é influenciada pela forma como vivemos.

A abordagem tecnopolítica nos permite um retorno às utopias a partir do momento que considera que o equilíbrio, se existe, é raríssimo e é apenas a manifestação de um equilíbrio temporário e fugidio (19). A vida é dinâmica e conseqüentemente a luta política sempre será necessária. Sentimos a necessidade de sermos cabeças duras. Não será nosso arcabouço teórico e nossas conclusões a respeito das possíveis falhas da nossa luta que devem pautar nossas ações. A ação deve ser é pautada pela vontade da mudanças, nosso ideal e nossa ética. Por mais que saibamos o quanto é difícil para o mundo mudar, por mais que a teoria nos diga que seremos fagocitados, por mais patéticos que sejamos, o sentimento de pelo menos termos tentado e não fugido da batalha política, de não termos nos omitido, é o mínimo que devemos buscar.

Esse retorno da utopia nos recoloca a questão de como se dá o processo de mudança. Antes, se perguntava: cuidaremos de aprontar a "revolução" para só então praticarmos a tecnocultura que acreditamos (ou seja, nos preocuparemos apenas com essa revolução, numa abordagem puramente social) ou adotaremos desde já nossa própria tecnocultura e esperaremos que dessa nossa prática o mundo mude ou que, assim procedendo, pelo menos teremos "feito a nossa parte" (numa abordagem puramente de estilo de vida). Em outras palavras, a problemática era: como lidar com o dilema entre a adoção de práticas sociais revolucionárias (ou seja, pensar apenas no engajamento social) e a adoção de um simples estilo de vida alternativo àquele com o qual não desejamos compactuar?

Acreditamos que essa polarização exista exatamente pela falta de uma discussão sobre as possibilidades que uma abordagem tecnopolítica pode trazer à atuação social e pessoal. Sendo a nossa tecnocultura o conjunto de procedimentos e descrições pelos quais efetuamos a mudança, podemos estabelecer técnicas e culturas que se encaminhem para um processo revolucionário.

Se esperássemos a oportunidade de uma revolução anticapitalista -- que destruísse o capital e as instâncias de poder e controle social existentes -- para só então mudarmos nossas práticas sociais, precisaríamos adentrar num segundo processo revolucionário apenas para alcançar esse objetivo posterior, o que claramente é um absurdo. No outro extremo, precisaríamos igualmente de um segundo processo revolucionário se todas as pessoas decidissem mudar apenas seu estilo de vida e deixassem que o mundo fizesse o resto, o que, além de ser outro absurdo, teria que reinventar a esfera do social, destruída pela incapacidade das pessoas de se articularem numa nova configuração conjunta.

A revolução não é um processo que é desencadeado após muito trabalho de base, como a abordagem social sugere, nem a somatória de micro-revoluções pessoais, como sugere a abordagem de estilo de vida, mas sim um processo constituído pela constante interação entre pessoas. Trata-se de interações de troca tecnológica e cultural, assim como também de atividades desenvolvidas conjuntamente entre as pessoas que visem a possibilidade de mudança não apenas individual mas de todo o corpo social. A revolução é então um processo que revoluciona ao se revolucionar, tendo como desejo de mudança as utopias das pessoas. Não é apenas esperar a condição "favorável" para uma sublevação e muito menos apenas mudar a si mesmo e pensar que "se todo mundo fizer como eu então a revolução terá se efetivado". A revolução é o processo de se preparar e se modificar o tempo todo: se houver condição de um levante, tanto melhor! Se não houver, então os períodos de calmaria podem servir como maturação e preparação para os mais conturbados.

Nesse contexto de utopia e atuação que buscamos a tecnologia e a cultura como viabilizadoras de nosso projeto político. A tecnocultura pode se desenvolver de modo a termos uma existência mais harmônica e dialógica com o resto do ambiente do que o atual paradigma tecnocrata do monólogo do capital. Ao mesmo tempo a tecnocultura pode nos oferecer os instrumentos e os meios que necessitamos para que seja possível adentrar num processo revolucionário profundo que perverta a estrutura injusta do mundo em que vivemos.

Podemos adotar práticas de produção e gestão alternativas muito antes da "grande revolução chegar" ao mesmo tempo em que podemos adotar práticas revolucionárias sem ao menos contarmos com a possível chegada do "dia da revolução". Em outras palavras, para ficar bem claro, acreditamos que a revolução social é um ato de constante mudança das práticas culturais, tecnológicas, políticas e sociais, sejam as mudanças lentas e graduais, sejam elas abruptas e repentinas. O trabalho para uma revolução abrupta requer a adoção de práticas tecnoculturais que possibilitem a chegada dessa revolução, o que em si já constitui um processo revolucionário.

Acreditamos, por exemplo, que as práticas do freeganismo, da permacultura, das hortas urbanas, da compostagem, da reciclagem e do faça você mesmo constituem um conjunto de tecnologias e culturas muito válidas por apontarem para formas mais sustentáveis de existência, mas que sozinhas não dão conta das lutas necessárias e urgentes a serem encampadas. Precisamos também de tecnologias de resistência e que nos ajudem a nos organizar para que consigamos fazer frente a um sistema social produtor de miséria.

Não adianta apenas defendermos a permacultura, por exemplo, se não pensarmos ações contra a concentração fundiária, o desflorestamento, os organismos geneticamente modificados, a biopirataria e a luta de pessoas sem-terra, dentre muitas outras. Cremos então que as atuações -- e o conjunto tecnocultural por elas utilizado -- deva ser multidirecional, tanto mudando nossa forma de viver e atuar quanto mudando o próprio mundo. Mudando nossa forma de aturar ao mudarmos o mundo e mudando o mundo ao mudarmos nossa forma de atuar.

Sim, teremos que fazer escolhas: nossa energia, nosso tempo e recursos disponíveis para essa tarefa são limitados. Inevitavelmente teremos que fazer escolhas a respeito do nosso campo de atuação, sendo que tão restrito será nosso campo de atuação quanto menos pessoas atuando conjuntamente conosco. Isso não significa que nossas limitações devam nos levar de volta ao dilema da atuação social e do estilo de vida, o que mostramos ser um absurdo. Temos é que escolher em quais atividades nos engajaremos e quais não nos engajaremos.

Se contarmos com as vantagens oferecidas pela capacidade de análise tecnopolítica, porém, teremos muito mais condição de estipular no que compensa mais e o que compensa menos nos engajarmos. Na abordagem tecnopolítica, não se evita o conflito: muito pelo contrário, ela assume que os conflitos são inevitáveis -- afinal, como evitar conflitos se o que queremos é mudar inúmeros paradigmas do campo social? --, tendo a política para enfrentá-los e a tecnologia para estabelecê-los (e vice-versa).

O primitivismo afirma que houve um passado onde a existência humana era harmoniosa, pacífica, justa, etc, para então afirmar que, como hoje estamos numa péssima condição socioambiental, a única saída é o retorno ao estado primitivo. A primeira afirmação é, além de baseada em controversos estudos arqueológicos e antropológicos (sobre os quais não queremos entrar no mérito por julgarmos que o debate deva ser dado em outro nível), errônea por ignorar a existência dos desequilíbrios que inclusive foram os que levaram ao próprio afastamento da humanidade desse "estado original". Já a segunda afirmação condena a cultura e a tecnologia a somente promoverem a desgraça humana, o que ignora o fato de que a tecnocultura é, antes de tudo, uma escolha política.

As tecnologias e as culturas que hoje dominam o mundo certamente se baseiam numa lógica de expropriação, exploração e degradação enormes do socioambiente, mas isso não significa que qualquer tecnologia e cultura levem necessariamente a essas condições. A tecnologia pode fazer mais com menos (não apenas mais comida com menos trabalho, mas também mais comida com menos desgastes humanos e ambientais) e sobretudo escolher o que fazer e como fazer. Podemos escolher nosso destino, e é isso que está em jogo.

Notas e Referências

 

1 Microfísica do Poder, págs. 17-18 (páginas 12-13 do pdf).

Uma resposta a esse texto se encontra em: http://umanovacultura.blogspot.com/2008/02/uma-resposta-tecno-poltica.html


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